segunda-feira, 25 de maio de 2009


E. E. E. FUNDAMENTAL E MÉDIO TANCREDO DE ALMEIDA NEVES
COMPONENTE CURRICULAR: FILOSOFIA
PROFESSOR ISRAEL MARTINS


1. CULTURA: O COSMO HUMANO

CULTURA
A resposta do homem ao desafio da existência.

Para antropólogos e sociólogos, a palavra cultura passou a indicar o conjunto dos modos de vida criados e comunicados de uma geração para outra, entre os membros de determinada sociedade. Nesse sentido, abrange conhecimentos, crenças, artes, moral, lei, costumes e quaisquer outras capacidades adquiridas socialmente pelos homens.
A cultura pode ser considerada, portanto, como amplo conjunto de conceitos, de símbolos, de valores e de atitudes que modelam uma sociedade. A cultura engloba o que pensamos, fazemos e temos enquanto membros e temos enquanto membros de um grupo social.
Nesse sentido o termo cultura é aplicável tanto a uma civilização tecnicamente evoluída quanto às formas de vida social mais rústicas. Todas as sociedades humanas, da pré-história aos dias atuais, possuem uma cultura. E cada cultura tem seus próprios valores e sua própria verdade.
Para a filosofia cultura é a resposta oferecida pelos grupos humanos aos desafios da existência. Uma resposta que se manifesta em termos de conhecimento, paixão e comportamento. Ou seja, em termos de razão, sentimento e ação.

CARACTERÍSTICAS DA CULTURA

A cultura é duradoura embora os indivíduos que compõem um determinado grupo desaparecem. No entanto, a cultura também se modifica conforme mudam as normas e entendimentos. Pode-se dizer que a cultura vive nas mentes das pessoas que a possuem. Mas, as pessoas não nascem com ela; adquirem-na à medida que crescem.
Quando se fala de cultura, pensa-se em algo que perdurou por meio do tempo.
A maioria dos estudiosos concorda com os elementos apontados por Braidwood e afirma que toda cultura: é adquirida pela aprendizagem; é comunicada de geração a geração, por meio da linguagem; é criação exclusiva dos seres humanos; inclui todas as criações materiais e não-materiais dos homens; apresenta estruturas duradouras, mas que sofrem evolução através da história; é um instrumento indispensável à adaptação do indivíduo ao meio social, tornando possível a expressão das potencialidades humanas.

A IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM HUMANA

A linguagem é um dos traços mais característicos da humanidade. É capacidade que permite aos homens comunicarem-se uns com os outros por meio de um código.
Para Sapir a linguagem é um método puramente humano e não instintivo de se comunicarem ideias, emoções e desejos por meio de símbolos voluntariamente produzidos.
Para o filosofo Martin Heideggera língua é o solo comum da cultura de um povo. É um fato puramente cultural e representa um dos mais fortes laços de união entre os membros de uma comunidade. É o instrumento pelo qual o individuo assimila a cultura do grupo a que pertence.
Por outro lado, o conhecimento individual de cada pessoa também torna-se, por meio da linguagem, patrimônio social.

A PERFECTIBILIDADE HUMANA

O filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau identificou essa inquietude e singularidade em sua célebre obra Discurso sobre a desigualdade. Nesse sentido, aponta uma faculdade que só o homem possui como a principal responsável por suas glorias e, ao mesmo tempo, por seu afastamento do estado de natureza e de felicidade. É a perfectibilidade humana, a capacidade do homem de aperfeiçoar-se.
A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influencia, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é, sobretudo, na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma (...)
Mas, (...) sobre a diferença entre o homem e o animal, haveria uma outra qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstancias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no individuo; o animal, pelo contrario, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares.
Porque só o homem é suscetível de tornar-se imbecil? (...) Seria triste, para nós, vermo-nos forçados a convir que seja essa faculdade, distintiva e quase ilimitada, a fonte de todos os males do homem; que seja ela que, com o tempo, o tira dessa condição original na qual passaria dias tranquilos e inocentes; que seja ela que, fazendo com que por meio dos séculos desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza.
Como maioria dos animais, o homem se preocupa em satisfazer necessidades básicas relacionadas a fome, sede, sexo e outras questões da sobrevivência. Mas só a satisfação dessas necessidades não é suficiente para torná-lo feliz. Ele precisa de muito mais para ser plenamente humano. Precisa atender a sua necessidade de crescimento interior, de relacionamento social, de expansão da criatividade, de busca da verdade e da justiça. Como o escritor russo Dostoievsky disse: O homem necessita do insondável e do infinito tanto quanto do pequeno planeta onde habita.


NATUREZA EM DESTRUIÇÃO

O PODER DA CONSCIENCIA PARTICIPANTE
A concepção da realidade que predominou no Ocidente até as vésperas da revolução cientifica era e de um mundo encantado. As rochas, as árvores, os rios e as nuvens eram tidos pelo homem como seres maravilhosos e portadores de vida. Os homens, por sua vez, sentiam-se em casa neste mundo encantado. O cosmo era o lar ao qual pertenciam. Cada pessoa não era um observador distante e alienado, mas um direto participante da trama da vida. O destino pessoal de cada um estava ligado ao destino do cosmo, e esta inter-relação conferia sentido profundo à vida de todos. Esse tipo de concepção da realidade – que chamarei consciência participante – envolve a fusão ou identificação do homem com o seu ambiente natural, expressando uma integração psíquica que há muito tempo deixou de existir.
Considerando-se o plano mental, a história da Idade Moderna é uma história de progressivo desencantamento. A partir do século XVI, a mentalidade científica nos tornou verdadeiros estrangeiros (seres não-integrados) em relação aos fenômenos do mundo. Inovações capazes de questionar essa visão da realidade – física quântica, ou certas pesquisas ecológicas – não foram suficientemente fortes para abalar a forma dominante do pensamento vigente. Essa forma pode ser adequadamente descrita com palavras como desencantamento, não-interligação, pois ela insiste em estabelecer uma rígida separação entre o observador e o observado. Assim, a consciência cientifica tornou-se uma consciência alienada no sentido de que não promove uma fusão harmoniosa com a natureza, mas sim a separação plena dela. O sujeito conhecedor e o objeto investigado são encarados como pólos opostos, antagônicos. Não sou minhas experiências e conclusões sobre o mundo. Portanto, não faço parte dessa visão de mundo é um sentimento de coisificação: tudo é objeto, estranho, não-eu. E eu afinal, também sou um objeto; um ser a parte, em meio a tantos outros seres. O cosmo não foi construído por mim, tampouco se importa com minha existência e eu não tenho a sensação de estar nele integrado.
Durante mais de 99% da historia da humanidade, vigorou a concepção de que o mundo era encantado e o homem se sentia como parte integrante dele. Nos últimos quatro séculos, a total reversão dessa concepção destruiu, no plano psíquico e físico, o sentimento de integração do homem em relação ao cosmo. Isso foi responsável pela quase-destruição ecológica do planeta. A única esperança, parece-me, está no re-encantamento do mundo como meio de nosso re-encontro.
É nisto que reside a questão central do dilema moderno. Não podemos voltar a alquimia ou ao animismo – pelo menos isso não parece provável. Por outro lado, não podemos permanecer com este mundo triste, de frieza cientifica, controlando por computadores, ameaçado por reatores nucleares. É preciso desenvolvermos algum tipo de consciência holística ou participante – e uma formação sociopolítica correspondente – se desejamos sobreviver enquanto espécie genuinamente humana.
Morris Berman

PROBLEMATIZAÇÃO

01. A concepção da realidade que predominou no Ocidente até as vésperas da revolução cientifica era a de um mundo encantado. O que o autor entende por mundo encantado?

02. A consciência cientifica tornou-se uma consciência alienada no sentido de que não promove uma fusão harmoniosa com a natureza, mas a separação plena dela. O sujeito conhecedor e o objeto investigado são encarados como pólos opostos, antagônicos. O que significa, nesse texto, a expressão consciência alienada, para definir a atitude cientifica de investigação da natureza?

03. Segundo o autor, dentro do tema enfocado, qual a questão central do dilema moderno?

04. Desenvolva um argumento criticando a opinião de Morris Berman.





2. CONSCIÊNCIA CRÍTICA E FILOSOFIA

O DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA

O homem como sistema aberto.
Nada caracteriza melhor o ser humano do que a consciência, isto é, o desenvolvimento dessa atividade mental que nos permite estar no mundo com algum saber, com-ciência. Por isso a biologia classifica o homem atual como sapiens sapiens: o ser que sabe que sabe. O homem é capaz de fazer sua inteligência debruçar sobre si mesma para tomar posse de seu próprio saber, avaliando sua consistência, seu limite e seu valor.
O animal sabe. Mas, certamente, ele não sabe que sabe; de outro modo, teria há muito multiplicado invenções e desenvolvido um sistema de construções internas. Consequentemente, permanece fechado para ele todo um domínio do real, no qual nos movemos. Em relação a ele, por sermos reflexivos, não somos apenas diferentes, mas outros. Não só simples mudança de grau, mas mudança de natureza, que resulta de uma mudança de estado.
A consciência faz do homem um sistema aberto fundamentalmente relacionado com o mundo e consigo mesmo. Assim, pode caminhar para dentro, investigando seu íntimo, e projetar para fora, investigando o universo.
Aberto ao ser e ao saber, a conscientização faz o homem dinâmico. Eterno caminhante destinado à procura e ao encontro da realidade. Caminhante cuja estrada é feita da harmonia e do permanente conflito com o saber, o saber e o fazer, essas dimensões essenciais da existência humana.


CONSCIÊNCIA CRÍTICA: A DIALÉTICA DO EU E DO MUNDO

A consciência pode centrar-se sobre o próprio sujeito, sondando a interioridade, ou sobre os objetos exteriores, sondando a alteridade. Portanto, há duas dimensões complementares no processo de conscientização: a consciência de si e a consciência do outro.
A consciência de si é a concentração da consciência nos estado interiores do sujeito, exige reflexão, alcança-se, por intermédio dela, a dimensão da interioridade que se manifesta por meio do processo de falar, criar, afirmar, propor e inovar.
A consciência do outro é a concentração da consciência nos objetos exteriores, exige atenção. Alcança-se por intermédio dela, a dimensão da alteridade que se manifesta por meio do processo de escutar, absorver, reformular, rever e renovar.
O despertar da consciência crítica depende do harmonioso crescimento dessas duas dimensões da consciência: a reflexão sobre si e a atenção sobre o mundo. A consciência só do outro conduz a perda da identidade pessoal e a consciência só de si conduz ao isolamento, ao fechamento interior.
O escritor Wolfgang Goethe dizia que o homem só conhece o mundo dentro de si se toma consciência de si mesmo dentro do mundo. Assim, o desenvolvimento da conscientização humana depende da superação do isolamento e do alheamento. É um processo dialético, que se move do eu ao mundo e do mundo ao eu. Do fazer ao saber e do saber ao re-fazer.




PENSAMENTO: AS ASAS E RAÍZES DO HOMEM

O principal veículo do processo de conscientização é o pensamento. A atividade de pensar confere ao homem asas para mover-se no mundo e raízes para aprofundar-se na realidade.
Em sentido amplo, pode-se dizer que o pensamento tem como missão tornar-se avaliador da realidade. Para Descartes a essência do homem é pensar. Por isso dizia: Sou uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que afirma, que nega, que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que ama, que odeia, que quer e não quer, que também imagina e que sente.
O pensamento faz a grandeza ou a pequenez do homem. A grandeza decorre do pensamento bem pensado, que avalia a multiplicidade do real e se esforça para desvendá-lo, ouvi-lo atentamente, saboreando sua riqueza e diversidade. Tal pensamento aprendeu a desejar amorosamente a verdade, a amar a sabedoria.
A pequenez humana decorre do pensamento obscuro, mesquinho e estereotipado, que teme a aventura de se lançar sobre o real e desconhece o sabor da busca do saber. O pensamento carente de grandeza transforma-se em meio de ocultação da realidade. Por meio dele, a atividade pensante, em vez de servir à liberdade, pode tornar-se instrumento de dominação social.


O QUE É SENSO COMUM

No cotidiano surge uma serie de opiniões sobre os mais variados assuntos. Muitas dessas opiniões frequentemente conseguem um consenso, obtêm a concordância da maioria das pessoas de um grupo. Elas podem se tornar concepções aceitas por uma sociedade inteira.
Essas concepções geralmente aceitas como verdadeiras num determinado meio social recebe o nome de senso comum. É uma serie de crenças admitidas por um determinado grupo social e que seus membros acreditam serem compartilhadas por todos os homens.
Muitas das concepções do senso comum de um povo ou de uma classe social transformam-se em frases feitas ou em ditados populares. Repetidas irrefletidamente no cotidiano, algumas dessas noções escondem ideias falsas, parciais ou preconceituosas. Outras podem até revelar uma profunda visão de vida, ao que se chama sabedoria popular.
O caracteriza o senso comum não é sua verdade ou falsidade. É sua falta de fundamentação. As pessoas não sabem o porquê dessas noções. São aceitas e defendidas sem saber explicá-las. Trata-se de um conhecimento adquirido sem uma base crítica, precisa, coerente e sistemática.


O DESPERTAR CRÍTICO E A BUSCA DA VERDADE

Parar para pensar, refletir, é atitude fundamental na compreensão do real.
Primeiro foi o espanto, depois o despertar crítico e a decepção para o mundo, uma ordem para o caos. Queria a verdade. Essa busca da verdade tornou-o cada vez mais exigente com o conhecimento que adquiria e comunicava. Ambicioso, o homem sentia uma necessidade crescente de entender e explicar tudo de maneira clara, coerente e precisa. Nascia assim a filosofia.
Para Milton Meira a riqueza da filosofia reside na sua plenitude. Não há uma, mas várias filosofias.
Para Platão a filosofia é o desenvolvimento e uso do saber em beneficio do homem.
Para Rubens Filho o sentido da palavra filósofo não é unívoco. Aristóteles e Diderot não são filósofos no mesmo sentido, e, em cada tempo, o nome de filósofo define uma função diferente.
Para Schelling a palavra filosofia é acertada. Todo o nosso saber sempre permanecerá filosofia, isto é, sempre um saber apenas em progresso, cujo grau superior ou inferior devemos apenas ao nosso amor à sabedoria, isto é à nossa liberdade.
Para Wittgenstein a filosofia não é uma doutrina, mas uma atividade. É uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem


A EXTENSÃO E O PAPEL DO CONHECIMENTO FILOSÓFICO

O saber filosófico designa a totalidade do conhecimento racional desenvolvido pelo homem. Abrange o conjunto dos conhecimentos racionais integrados dentro do universo do saber filosófico. Era a busca de se conhecer a totalidade sem dividir.
A partir da Idade Moderna a realidade a ser conhecida passou a ser dividida, recortada, despertando estudos especializados. Era a separação entre ciência e filosofia. Ao se constituírem por esse processo as ciências passaram a direcionar suas investigações a certos campos delimitados da realidade.
Os dias atuais caracterizam-se como a era dos especialistas. O problema é que ela conduz a uma pulverização do saber, à perda da visão mais ampla do conhecimento humano.
Nesse sentido o papel da filosofia passou a ser a recuperação dessa unidade do saber, de questionar a validade dos métodos e critérios adotados pelas ciências. Passou a desenvolver o trabalho de reflexão sobre os conhecimentos alcançados e a procura de respostas à finalidade, ao sentido e ao valor da vida e do mundo.
Assim, pode-se dizer que pertence à filosofia o estudo geral dos seres, do conhecimento e do valor das coisas.


HOMEM: O SER QUE PERGUNTA

Normalmente perguntamos sem refletir sobre o próprio perguntar, sem indagar pelo significado dessa operação da inteligência que se acha na raiz de todo conhecimento e de toda ciência. E ao perguntar pelo perguntar, convertemos essa operação, que nos parece tão banal, tão quotidiana, em tema filosófico, a partir do momento em que passamos a considerá-la do ponto de vista da crítica radical.
Se compararmos, nesse aspecto, o comportamento humano com o do animal, verificaremos que o animal não pergunta, não indaga, limitando-se a responder. Mas, por que o animal não pergunta? Não pergunta porque não precisa perguntar. E por que não precisa perguntar? Porque, para viver e reproduzir-se, dispõe do instinto que o torna capaz de fazer, embora inconsciente e sonambulicamente, tudo o que é necessário para sobreviver e assegurar a sobrevivência de sua espécie. O animal não pergunta, limita-se a responder aos estímulos e provocações do contexto em que se encontra, a responder imediatamente, fugindo do perigo, quando é ameaçado, e atacando a presa quando está com fome.
Entre o animal e o contexto em que vive não há ruptura, não há solução de continuidade. Porque o animal é natureza dentro da natureza, instinto, espontaneidade vital, inconsciência.
Quando o comportamento do animal não é ditado pelo instinto, pela necessidade de alimentar-se, ou de reproduzir-se, e de mover-se no espaço, é ditado pelos estímulos exteriores que provocam reflexos ou respostas previamente determinados. O animal não precisa saber o que são as coisas, não precisa perguntar, porque sabe, por instinto, tudo o que precisa saber para sobreviver e assegurar a sobrevivência da espécie, do grupo ou da família a que pertence.
Essa ciência está implícita em sal natureza, pois o peixe nasce sabendo nadar, o pássaro sabendo voar, e os gatos e cachorros sabendo a andar e correr. A integração no contexto natural é completa, mesmo por parte dos animais que constroem colmeias como as abelhas, edifícios para morar como as formigas, ou teias como as aranhas. Essas construções são obras do instinto, atividade que realiza fins determinados sem ter consciência de que os realiza, sem ter a possibilidade, ou liberdade de não realizá-los. Pois ser abelha e construir colmeias é a mesma coisa, e a mesma coisa, também, é ser formiga e erguer formigueiros, e ser aranha e fabricar as teias. Toda a conduta, toda a atividade do animal está predeterminada, pré-estabelecida, em sua natureza, inclusive a possibilidade, que se verifica em relação a certos animais superiores, de serem adestrados para trabalhar nos circos.
Em contraste, o homem pergunta. E, por que pergunta? Porque precisa perguntar. Mas, por que precisa perguntar? Precisa perguntar porque não sabe e precisa saber, saber o que é o mundo em se encontra e no qual deve viver. Para saber viver e viver é conviver, com as coisas e com os outros homens, precisa saber como as coisas e os outros homens se comportam, pois sem esse conhecimento não poderia orientar sua conduta em relação às coisas dos homens. Para o ser humano o conhecimento não é facultativo, mas indispensável, uma vez que sal sobrevivência dele depende. Mas, para que esse conhecimento lhe permita transformar a natureza, pondo-a a seu serviço, e lhe permita, também, transformar sua própria natureza, pela educação e pela cultura, para que esse conhecimento possa tornar-se o fundamento de uma técnica realmente eficaz, é indispensável que não seja meramente empírico, mas cientifico, ou epistemológico, como diziam os gregos.
Ora, que está na origem do conhecimento, tanto filosófico quanto científico? Na origem desse conhecimento está a capacidade, ou melhor, a necessidade de perguntar, de indagar, o que são as coisas e o que é o homem. E qual é o pressuposto, ou a condição, de possibilidade da pergunta? Se pergunto é porque não sei, ou me comporto como se não soubesse. A pergunta supõe, consequentemente, a ignorância em relação ao que se pretende ou precisa saber, pressupondo também, e ao mesmo tempo, a consciência da ignorância e o conhecimento, por assim dizer, em oco, daquilo que se desconhece e precisa conhecer. A mola do processo é a contradição. Não sei e sei que não sei, e essa consciência da ignorância, a ciência da insciência, é o que me permite perguntar, quer a pergunta se dirija à natureza, quer se enderece aos outros homens.
Na origem, na raiz do perguntar, encontramos, portanto, a ruptura, a cisão, a contradição. Não sei, preciso saber e porque sei que não sei, pergunto, na expectativa de que a resposta possa trazer-me o conhecimento que não tenho e preciso ter.

Rolando Corbisier



PROBLEMATIZAÇÃO

01. Segundo o autor, normalmente fazemos perguntas sem refletir sobre o próprio ato de perguntar, sem questionar o significado dessa operação da inteligência de rompermos com essa atitude, isto é, perguntamos pelo perguntar?

02. Baseando-se no texto, responda: por que o animal, para viver, não precisa perguntar?

03. Em contraste com o animal, por que o homem precisa perguntar?

04. Disserte sobre estas palavras: Não sei e se sei que não sei, e essa consciência da ignorância é o que me permite perguntar.

(Fonte: COTRIN, Gilberto. Fundamentos da filosofia: ser, saber e fazer. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1993.)


DO VIRTUAL AO ESPIRITUAL

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão. Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois modelos produz felicidade? 'Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: 'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'. Comemorei: 'Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde '. 'Não', retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã... ' 'Que tanta coisa?', perguntei. 'Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina', e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: 'Que pena, a Daniela não disse 'tenho aula de meditação'!Estamos construindo super-homens e supermulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados. Por isso, as empresas consideram agora que, mais importante que o QI, é a IE, a Inteligência Emocional. Não adianta ser um super-executivo se não consegue se relacionar com as pessoas. Ora, como seria importante os currículos escolares incluírem aulas de meditação!Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto'? 'Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite'! Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega Aids, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse. Trancado em seu quarto em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra!Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também eticamente virtuais. A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do espírito. Televisão, no Brasil com raras e honrosas exceções, é um problema: a cada semana que passa temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos. A palavra hoje é 'entretenimento’; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante, vestir este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!' O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede, desenvolve de tal maneira o desejo que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose. Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes. Colocá-los aonde? Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma sugestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. Porque para fora ele não tem aonde ir! O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse. Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shoppings centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas... Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Deve-se passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald's. Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: 'Estou apenas fazendo um passeio socrático.' Diante de seus olhares espantados explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: 'Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz'.

Frei Betto - 06-Jun-2008











O texto que segue foi escrito por Platão, filósofo grego que viveu entre 427 e 374 antes de Cristo. Trata-se do famoso Mito da Caverna, recontado pelo escritor norueguês Jostein Gaarder.
O MITO DA CAVERNA
Imagine um grupo de pessoas que habitam o interior de uma caverna subterrânea. Elas estão de costas para a entrada da caverna e acorrentadas no pescoço e nos pés, de sorte que tudo o que vêem é a parede da caverna. Atrás delas ergue-se um muro alto e por trás desse muro passam figuras de formas humanas sustentando outras figuras que se elevam para alem da borda do muro. Como há uma fogueira queimando atrás dessas figuras, elas projetam sombras bruxuleantes na parede da caverna. Assim, a única coisa que as pessoas da caverna podem ver é este “teatro de sombras”. E, como essas pessoas estão ali desde que nasceram, elas acham que as sombras que vêem são a única coisa que existe.
Imagine agora que um desses habitantes da caverna consiga se libertar daquela prisão. Primeiramente ele se pergunta de onde vêm aquelas sombras projetadas na parede da caverna. Depois, consegue se libertar dos grilhões que o prendem. O que você acha que acontece quando ele se vira para as figuras que se elevam para além da borda do muro? Primeiro, a luz é tão intensa que ele não consegue enxergar nada. Depois, a precisão dos contornos das figuras, de que ele até então só vira as sombras, ofusca a sua visão. Se ele conseguir escalar o muro e passar pelo fogo para poder sair da caverna, terá mais dificuldade ainda para enxergar devido à abundância de luz. Mas, depois de esfregar os olhos, ele verá como tudo é bonito. Pela primeira vez verá cores e contornos precisos; verá animais e flores de verdade, de que as figuras na parede da caverna não passavam de imitações baratas. Suponhamos, então, que ele comece a se perguntar de onde vêm os animais e as flores. Ele vê o Sol brilhando no céu e entende que o Sol dá vida às flores e aos animais da natureza, assim como também era graças ao fogo da caverna que ele podia ver as sombras refletidas na parede.
Agora, o feliz habitante das cavernas pode andar livremente pela natureza, desfrutando da liberdade que acaba de conquistar. Mas as outras pessoas que ainda continuam lá dentro da caverna não lhe saem da cabeça. E por isso ele decide voltar. Assim que chega lá, ele tenta explicar aos outros que as sombras na parede não passam de trêmulas imitações da realidade. Mas ninguém acredita nele. As pessoas apontam para a parede da caverna e dizem que aquilo que vêem é tudo o que existe. Por fim, acabam matando-o.
(GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: Romance da história da filosofia. São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 104-5)

PROBLEMATIZAÇÃO:
1. Um mito ou uma lenda nunca é um simples relato de fatos. Tem o objetivo de transmitir uma idéia, explicar um fenômeno da natureza, a origem da vida ou caracterizar algum aspecto do comportamento humano. O que Platão quis transmitir com o relato desse mito?

2. Por que as pessoas da caverna não acreditaram nas palavras do companheiro?

3. Em que situações do nosso cotidiano podemos agir como os homens da caverna?

4. As pessoas que só enxergam as sombras da realidade exterior têm uma visão bastante limitada da vida. O que elas consideram como verdade é apenas uma pequena parte de uma verdade maior. Escreva um parágrafo argumentando essas afirmativas.
3. TEORIA DO CONHECIMENTO: INVESTIGANDO O SABER

A QUESTÃO DO CONHECIMENTO
Um tema para muitas discussões

A história do pensamento ocidental testemunha a atenção que as especulações filosóficas concentraram sobre determinados temas. Esses temas, discutidos em diversos períodos, tornaram-se o que chamamos problemas filosóficos. Entre os principais problemas filosóficos está o do conhecimento. Para compreender a si e o mundo, os homens querem entender a sua própria capacidade de entender.
Desde a Antigüidade grega, quase todos os filósofos se preocuparam com o problema do conhecimento humano. Problema que envolve questões extremamente importantes, como as seguintes:
· O que é conhecimento?
· É possível o conhecimento?
· Qual é fundamento do conhecimento?
Todas essas questões são tratadas por uma disciplina filosófica que costuma ser designada por diversos nomes: teoria do conhecimento, gnosiologia, crítica do conhecimento ou epistemologia.

TEORIA DO CONHECIMENTO: AS CONDIÇÕES DO CONHECIMENTO VERDADEIRO
Em que consiste, então, a teoria do conhecimento?

A teoria do conhecimento pode ser definida como a investigação acerca das condições do conhecimento verdadeiro. Neste sentido podemos dizer que existem tantas teorias do conhecimento quantos foram os filósofos que se preocuparam com o problema, pois é impossível constatar uma coincidência total de concepções mesmo entre filósofos que habitualmente são classificados dentro de uma escola ou corrente. Dentre as principais questões tematizadas na teoria do conhecimento podemos citar: as fontes primeiras de todo conhecimento ou o ponto de partida; o processo que faz com que os dados se transformem em juízos ou afirmações acerca de algo; a maneira como é considerada a atividade do sujeito frente ao objeto a ser conhecido; o âmbito do que pode ser conhecido segundo as regras da verdade etc.
A teoria do conhecimento é, em resumo, uma reflexão filosófica com o objetivo de investigar as origens, as possibilidades, os fundamentos, a extensão e o valor do conhecimento.
Embora o problema do conhecimento tenha preocupado os filósofos desde a Antigüidade, somente a partir da Idade Moderna a teoria do conhecimento adquiriu a grande importância, passando a ser tratada como uma das disciplinas centrais da filosofia. Para esse processo de valorização da teoria do conhecimento colaboraram, de forma decisiva, as obras do filósofo francês Renê Descartes (1596-1650), do filósofo inglês John Locke (1632-1704) e do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804).


SUJEITO E OBJETO: OS DOIS ELEMENTOS DO PROCESSO DE CONHECIMENTO

Mas o que é, afinal, conhecimento? O filósofo Richard Rorty nos traz a definição mais freqüente da filosofia para essa questão: conhecer é representar cuidadosamente o que é exterior à mente.
A representação, por sua vez, é o processo pelo qual a mente torna presente diante de si a imagem, a idéia ou o conceito de algum objeto.
Portanto, para que exista conhecimento, sempre será necessário a relação entre dois elementos básicos: um sujeito conhecedor e um objeto conhecido. Só haverá conhecimento se o sujeito conseguir apreender o objeto, isto é, conseguir representá-lo mentalmente.
Dependendo da corrente filosófica, será dada, no processo de conhecimento, maior ou menor importância ao sujeito ou ao objeto.

AS POSSIBILIDADES DO CONHECIMENTO
A capacidade humana de conhecer a verdade é colocada em xeque

Somos capazes de conhecer a verdade? É possível ao sujeito apreender o objeto? Afinal, quais são as possibilidades do conhecimento humano?
As respostas dadas a essas questões levaram ao surgimento de duas correntes básicas e antagônicas na história da filosofia. Uma é o ceticismo, que prega a impossibilidade de conhecermos a verdade. A outra é o dogmatismo, que defende a possibilidade de conhecermos a verdade.


CETICISMO ABSOLUTO: TUDO É ILUSÓRIO E PASSAGEIRO

O ceticismo absoluto consiste em negar de forma total nossa possibilidade de conhecer a verdade. Assim, para o ceticismo absoluto, o homem nada pode afirmar, pois nada pode conhecer.
Muitos consideram o filósofo grego Górgias (485-380 a. C.) o pais do ceticismo absoluto. Seguindo ele: o ser não existe; se existisse não poderíamos conhecê-lo, e se pudéssemos conhecê-lo, não poderíamos comunicá-lo aos outros.
Outros estudiosos apontam o filósofo grego Pirro (365-275 a. C.) como fundador do ceticismo absoluto. Pirro afirmava ser impossível ao homem conhecer a verdade devido a duas fontes principais de erro:
· Os sentidos: segundo Pirro, nossos conhecimentos são provenientes dos sentidos, mas eles não são dignos de confiança, pois podem nos induzir ao erro.
· A razão: para Pirro, as diferentes opiniões manifestadas pelos homens sobre os mesmo assuntos revelam os limites de nossa inteligência. A superação constante das teorias científicas por outras mostras que todo o nosso conhecimento é provisório. Jamais alcançaremos certeza de qualquer coisa.
Os críticos do ceticismo absoluto afirmam que ele é uma doutrina radical, estéril e contraditória. Radical porque nega totalmente a possibilidade de conhecer. Estéril porque não leva a nada. Contraditória porque anula a si própria, pois, ao dizer que nada é verdadeiro, acaba afirmando que pelo menos existe algo de verdadeiro, isto é, o conhecimento de que nada é verdadeiro.

CETICISMO RRELATIVO: O DOMÍNIO DO APARENTE E DO PROVÁVEL

O ceticismo relativo consiste numa posição moderada em relação ao ceticismo absoluto, pois nega apenas parcialmente nossa capacidade de conhecer a verdade.
Existem várias modalidades de ceticismo relativo. Destacamos as seguintes:
· Fenomenalismo: esse termo deriva de fenômeno, que significa a manifestação de um fato, a aparência de um objeto qualquer. O fenomenalismo entende que só podemos conhecer a aparência dos seres, tal como eles se apresentam à nossa percepção sensorial e intelectual. Não podemos conhecer a essência das coisas. O fenomenalismo deriva das teorias de Kant, segundo as quais nosso conhecimento é incapaz de penetrar na “coisa em si”. Temos acesso, apenas, à “coisa para nós”, isto é, só podemos conhecer a exteriorização das coisas, captadas pela sensibilidade e trabalhadas pela inteligência.
· Probabilismo: propõe que nosso conhecimento é incapaz de atingir a certeza total das coisas. O que podemos alcançar é uma verdade provável. Essa probabilidade pode ser digna de maior ou menor credibilidade, mas nunca chegará ao nível da plena certeza, da verdade absoluta.

DOGMATISMO: A CERTEZA DA VERDADE

O dogmatismo é uma doutrina que defende a possibilidade de conhecermos a verdade. Dentro do dogmatismo, podemos distinguir duas variantes básicas:
· O dogmatismo ingênuo: predominante no senso comum, consiste em acreditar plenamente nas possibilidades do nosso conhecimento. O dogmatismo ingênuo não vê problema na relação sujeito conhecedor e objeto conhecido. Acredita que, sem grandes dificuldades, percebemos o mundo tal qual ele é.
· O dogmatismo crítico: acredita em nossa capacidade de conhecer a verdade mediante um esforço conjugado de nossos sentidos e de nossa inteligência. Conta que através de um trabalho metódico, racional e científico, o homem torna-se capaz de decifrar a realidade do mundo. Dentro dessa corrente, encontramos, por exemplo, os pragmáticos, que vêem o conhecimento como o resultado de uma operação de pesquisa e investigação, na qual o homem busca solucionar problemas por ele enunciados.

EMPIRISMO: A VALORIZAÇÃO DOS SENTIDOS COMO FONTE PRIMORDIAL

A palavra empirismo tem sua origem no grego empeira, que significa experiência sensorial. O empirismo defende que todas as nossas idéias são provenientes de nossas percepções sensoriais. Em outras palavras, ditas por Locke: nada vem à mente sem ter passado pelos sentidos.
O filósofo empirista John Locke afirmava também que, ao nascermos, nossa mente é como um papel em branco, completamente desprovido de idéias. De onde provém, então, o vasto conjunto de idéias que existe na mente humana? Locke responde com uma só palavra: da experiência, que resulta da observação dos dados sensoriais. Todo nosso conhecimento está nela fundado (...) empregada tanto nos objetos sensíveis externos como nas operações internas de nossas mentes, que são por nós percebidas e refletidas, nossa observação supre nosso entendimentos com todos os materiais do pensamento.

RACIONALISMO: A CONFIANÇA TOTAL E EXCLUSIVA NA RAZÃO

A palavra racionalismo deriva do latim ratio, que significa razão. O termo racionalismo é empregado, na filosofia, de muitas maneiras, aqui, o termo está sendo empregado para designar a doutrina que deposita total e exclusiva confiança na razão humana como instrumento capaz de conhecer a verdade. Ou, como recomendou Descartes: nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidência de nossa razão.
Os racionalistas afirmam que a experiência sensorial é uma fonte permanente de erros e confusões sobre a complexa realidade do mundo. Somente a razão humana, trabalhando com os princípios lógicos, pode atingir o conhecimento verdadeiro, capaz de ser universalmente aceito. Para o racionalismo, os princípios lógicos fundamentais seriam inatos na mente do homem. Daí por que a razão deve ser considerada como a fonte básica do conhecimento.

REALISMO CRÍTICO E MATERIALISMO DIALÉTICO: A EXPERIÊNCIA E O TRABALHO DA RAZÃO

Vimos que o empirismo considera a experiência dos sentidos como a base do conhecimento. De outro lado, o racionalismo afirma ser a razão humana a verdadeira fonte do conhecimento. Procurando um meio termo entre essas duas visões opostas e radicais, existem outras posições filosóficas, como o realismo crítico e o materialismo dialético. Para essas correntes, tanto os sentidos como a razão humana têm participação determinante na origem de nossos conhecimentos.
Segundo Jolivet, defensor do realismo crítico: o universo do conhecimento não é uma cópia do universo objetivo, mas uma construção efetuada pela inteligência, a partir dos dados sensíveis e correspondente, sob sua forma imaterial, às realidades da experiência (...) o universo do conhecimento é, pois, o universo real, mas apreendido pelo espírito, segundo o modo imaterial que lhe é próprio (...) nosso saber tem sua origem nos dados sensíveis, e de outra parte, que a razão compõe, a partir desses dados, um universo inteligível.
Para o materialismo dialético, o conhecimento humano evolui da experiência sensível à lógica racional. Os dados dos sentidos devem ser examinados e ordenados pela razão, e as conclusões da razão devem ser confrontadas com a observação sistemática dos sentidos. É através da prática humana que saberemos se um conhecimento é falso ou verdadeiro. Desta maneira, o principal criador do materialismo dialético, Karl Marx, escreveu: a questão se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a efetividade e o poder (...) do seu pensamento.
Práxis: refere-se no marxismo, à ação conjugada à reflexão. A práxis é responsável pelas atividades humanas destinadas a garantir a existência material da sociedade.
O estadista chinês Mao Tsé-Tung (1893-1976) sintetizou a teoria materialista dialética do conhecimento nos seguintes termos: inumeráveis fenômenos da realidade objetiva se refletem nos cérebros dos homens por meio dos órgãos de seus cinco sentidos. No começo, o conhecimento é puramente sensível. Depois esse conhecimento sensível, se acumulado quantitativamente, produzirá um salto e se converterá em conhecimento racional, em idéias. (...) Esta é a primeira etapa do processo do conhecimento em seu conjunto, etapa que conduz da matéria objetiva à consciência subjetiva, da existência às idéias. Nessa etapa, todavia, não se tem comprovado se a consciência e as idéias refletem corretamente a realidade objetiva.
Logo se apresenta a segunda etapa do processo do conhecimento, etapa que conduz da consciência à matéria, das idéias à existência, e isto significa aplicar na prática social o conhecimento obtido na primeira etapa, para ver se as teorias, os planos políticos, as resoluções, podem alcançar os objetivos esperados. De maneira geral, com relação a esse ponto, o que dá bom resultado é adequado, sendo errôneo o que dá mau resultado. (...) não há outro método para comprovar a verdade.
Freqüentemente, só se pode atingir a um conhecimento correto depois de muitas repetições do processo que conduz da matéria à consciência e da consciência à matéria, quer dizer, da prática ao conhecimento e do conhecimento à prática.



SITUAÇÃO COGNITIVA

Alguém sabe alguma coisa: é sob esta forma condensada que se apresenta toda a situação cognitiva. Antes de nos dobrarmos sobre as modalidades desta relação e sobre as suas diversas expressões, vamos esforçar-nos por explicitar o que se entende e subentende por esta afirmação.
Para que haja situação cognitiva, é preciso que a relação seja completa, isto é, que haja alguém que saiba alguma coisa. Por outras palavras, toda a situação cognitiva implica a existência de um sujeito cognoscente e de um objeto conhecido, unidos por uma relação cognitiva que se exprime sob a forma de um saber. Todo o saber implica a existência de um sujeito cognoscente e de um objeto conhecido em virtude de que, para lá das palavras – ou outros elementos cognitivos – que compõem esse saber, há um sujeito que conhece, isto é, que domina as palavras, e um objeto conhecido, a que as palavras se aplicam. Somos assim levados a afirmar que não pode haver saber fora da situação cognitiva, não pode haver saber em si.
Afirmar que não há saber sem sujeito cognoscente significa que todo o saber é um ato, uma atividade, e não uma essência. O saber não subsiste a título de entidade independente, só por contaminação é que se fala do saber contido nos livros. Essencialmente, o saber é a relação do homem com o seu mundo, uma certa aptidão e atitude do homem relativamente ao que existe: do ponto de vista do homem, sujeito cognoscente, o saber consiste essencialmente na atividade cognitiva. É sobre o homem considerado como sujeito cognoscente que aqui se põe toda a insistência, na medida em que se considera que a situação cognitiva, com o que ela implica de verbalidade, de possibilidade autônoma de progresso, de espontaneidade, de troca, é uma situação especificamente humana, pelo menos no estado atual do saber. Outras situações, como o saber dos animais, ou o dos ordenadores, só se dizem cognitiva por analogia.
(SCHLANGER, Jacques. O prazer de pensar. p. 34-5.)

PROBLEMATIZAÇÃO

Responda dissertando.

1. O que é uma situação cognitiva?

2. Que pólos existem em tal situação?

3. Por que a situação cognitiva é especificamente humana?



4. TRABALHO, REALIZAÇÃO E ALIENAÇÃO

TRABALHO

Essa “eterna necessidade natural” do homem

Podemos definir trabalho como toda atividade pela qual o ser humano utiliza sua energia física e psíquica para satisfazer suas necessidade ou para atingir um determinado fim. Por intermédio do trabalho, o homem acrescenta um mundo novo ao muno natural já existente. O trabalho é, portanto, elemento essencial da relação dialética entre o homem e a natureza, entre o saber e o fazer, entre a teoria e a prática.
Nesse sentido, o trabalho é uma atividade tipicamente humana, porque implica a existência de um projeto mental que determina a ação a ser desenvolvida para se alcançar o objetivo almejado.

A REALIZAÇÃO PELO TRABALHO

Quando pensamos sobre o papel do trabalho em seu aspecto individual, verificaremos que ele permite ao homem expandir suas energias, desenvolver sua criatividade e realizar suas potencialidades. Pelo trabalho o homem é capaz de moldar e mudar a natureza e, ao mesmo tempo, alterar a si próprio. Ou seja, trabalhando o homem pode modificar o mundo e a si mesmo, produzir cultura e se autoproduzir.
Em seu aspecto social, isto é, como esforço conjunto dos membros de uma comunidade, o trabalho tem como objetivo último a manutenção da vida e o desenvolvimento da sociedade. Assim, podemos concluir que o trabalho tem a função de promover a realização do indivíduo, a edificação da cultura e a solidariedade entre os homens.
Ocorre que, de categoria central da existência humana a eterna necessidade natural da vida social, o trabalho estaria perdendo seu poder irradiador de vida. De ato de criação virou rotina de reprodução, de recompensa pela liberdade se transformou em castigo.

O PROCESSO DE ALIENAÇÃO

O homem alheio a si mesmo.
A alienação é o processo pelo qual os atos de uma pessoa são governados por outros e se transformam em uma força estranha colocada em posição superior e contrária a quem a produziu. Na sociedade atual o processo de alienação atinge múltiplos campos da vida humana, impregnando as relações das pessoas com o trabalho, o consumo, o lazer, seus semelhantes e consigo mesmas.
O processo de alienação afeta milhões de trabalhadores nas sociedades capitalistas modernas, onde a produção econômica transformou-se no objetivo do homem, em vez de o homem ser o objetivo da produção. Na maioria das indústrias começou a tornar-se cada vez mais rotineiro, automatizado e especializado ao ser subdividido em múltiplas operações. Com isso economizava tempo e aumentava a produtividade. Era a chamada organização científica do trabalho, desenvolvida pelo economista norte-americano Frederick Taylor, cujo método ficou conhecido como taylorismo. A principal consequência é a fragmentação do trabalho que conduz a uma fragmentação do saber, o trabalhador perde a noção de conjunto do processo produtivo e vai se tornando fria, monótona e apática.
Nesse processo o trabalhador reduziu-se ao cumprimento de ordens relativas à qualidade e à quantidade da produção. Tudo transcorre sem que o operário tenha controle sobre o resultado final do seu trabalho. Ao executar a rotina do trabalho alienado, o homem vai se transformando em escravo daquilo que cria por uma razão básica: ele geralmente não desfruta dos benefícios que resultaram da sua atividade profissional. O trabalho alienado produz para satisfazer as necessidades do mercado. Produz coisas maravilhosas para os ricos, enquanto mantém o trabalhador na miséria.
Segundo Karl Marx,
O trabalho alienado se apresenta como algo externo ao trabalhador, algo que não faz parte de sua personalidade. Assim, o trabalhador não se realiza em seu trabalho, mas nega-se a si mesmo. Permanece no local de trabalho com uma sensação de sofrimento em vez de bem-estar, com um sentimento de bloqueio de suas energias físicas e mentais e depressão. Nessa situação, o trabalhador só se sente feliz em seus dias de folga enquanto no trabalho permanece aborrecido. Seu trabalho não é voluntário, mas imposto e forçado.
O caráter alienado desse trabalho é facilmente atestado pelo fato de ser evitado como uma praga, desde que não haja a imposição de cumpri-lo. Afinal, o trabalho alienado é um trabalho de sacrifício, de mortificação. É um trabalho que não pertence ao trabalhador, mas à outra pessoa que dirige a produção.


CONSUMO ALIENADO

No padrão de consumo sadio uma pessoa adquire uma coisa tendo em vista suas reais necessidades e pelo prazer de utilizá-la. Já no consumo alienado, o prazer do uso é muitas vezes substituído pelo poder da posse. O consumo age como se a felicidade consistisse, apenas, numa questão de poder sobre as coisas ignorando o prazer obtido com aquilo que ama, que curte, mesmo que não seja do gosto da maioria. Segundo Horkheimer quanto mais intensa é a preocupação do indivíduo com o poder sobre as coisas, mais as coisas o dominarão, mais lhe faltarão os traços individuais genuínos.
Enquanto no consumo sadio o consumidor busca satisfazer seus desejos concretos, no consumo alienado ele só satisfaz os desejos e as fantasias que lhe foram artificialmente inculcados. A vontade de consumo perde sua relação com a personalidade do indivíduo ao se desvincular de suas necessidades reais. Induzido pela máquina publicitária, o consumo deixa de ser um meio para o prazer pessoal e se transforma num fim em si mesmo. Torna-se um ato compulsivo movido pelo apetite de novidade. O consumidor alienado projeta o ter para substituir o vazio do ser.

LAZER ALIENADO

O processo de alienação na sociedade industrial afeta também a utilização do tempo livre destinado ao lazer. A indústria cultural e de diversão vende peças de teatro, filmes, shows, jornais e revistas tal como qualquer mercadoria. E o consumidor alienado compra seu lazer da mesma maneira manipulado com quem compra seu sabonete.
Agindo desse modo, muitos se esforçam e fingem que estão se divertindo. Na verdade, por meio da máscara da alegria se esconde uma crescente incapacidade para o verdadeiro prazer.

RELAÇAO SOCIAL ALIENADA

As relações humanas nas grandes cidades estão cada vez mais afetadas pela indiferença recíproca. As pessoas não são nem muito amigas nem inimigas. Não existe amor ou solidariedade entre as pessoas, ou seja, não se envolva com a vida de ninguém. Uma pessoa é assaltada e morta em pleno dia, numa rua lotada de gente, sem que ninguém intervenha para ajudar a vitima.

RELAÇÃO PESSOAL ALIENADA

O ser humano perde contato com seu eu, com sua individualidade. Sente-se como uma coisa que precisa alcançar sucesso no mercado das personalidades. O tipo de sucesso depende do mercado em que a pessoa quer vender sua personalidade. Como o homem moderno se sente ao mesmo tempo como o vendedor e a mercadoria a ser vendida no mercado, sua auto-estima depende de condições que escapam a seu controle. Se tiver sucesso será valioso, se não, imprestável.
O indivíduo não mais se identifica com o que ele é, sabe ou faz. Para ele não conta sua realização íntima e pessoal, mas apenas o sucesso em vender socialmente suas qualidades. EU SOU COMO VOCÊ QUER QUE EU SEJA.


AUTOMAÇÃO E NOVAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO

Mão-de-obra com pouca ou nenhuma qualificação está condenada a viver de bicos ou subempregos. Ela não preenche as qualificações mínimas exigidas pelos países ricos, onde o processo de automação está muito avançado, o trabalho é organizado sob novas formas e surge um novo tipo de trabalhador. Essas exigências começam a chegar ao Brasil, em especial naquelas empresas que trabalham com tecnologia de ponta nos setores de informática, biotecnologia e robótica.
A indústria automobilística ou o metrô são exemplos de uma realidade do primeiro mundo, onde a automação reduz os cargos necessários ao processo de produção. Um chefe munido de computadores consegue controlar todo um processo que antes precisava de vários trabalhadores. Com isso, foram eliminados os escalões intermediários.
Nesse panorama ocorre um processo de requalificação – uma espécie de volta aos padrões de qualificação existentes antes da adoção do taylorismo como modelo da produção em massa do início da industrialização. No antigo sistema, era qualificado o trabalhador que executava um serviço desde o inicio até o produto final. Com o taylorismo, adotou-se o principio básico de estabelecer uma separação entre concepção e execução no trabalho.
Em vez de um gorila amestrado, com capacidade suficiente para colocar o parafuso no lugar indicado, como requeria o inicio da industrialização, hoje se exige um trabalhador com conhecimento de todo o processo, consciente do produto final e capaz de identificar um possível erro. Esse é o novo perfil exigido nas indústrias que estão na linha de ponta no uso da tecnologia na produção.
A antiga figura do torneiro mecânico sujo de graxa corresponde a um operador de um asséptico microcomputador. Entre uma e outra imagem, mudam a organização e as relações de trabalho, acompanhando a evolução de uma atividade física e motora que agora exige um outro comportamento e a leitura de um novo código. A qualificação também se transforma.

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO

“E o diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num instante todos os reinos do mundo. E Disse-lhe o diabo: Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim foi entregue e dou-o a quem quero: portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: vai-te Satanás, porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a ele servirá” (Lc. 4,5-8)

Era ele que erguia casas onde antes só havia chão. Como um pássaro sem asas ele subia com as casas que lhe brotavam da mão. Mas tudo desconhecia de sua grande missão: não sabia, por exemplo, que a casa de um homem é um templo. Um templo sem religião como tampouco sabia que a casa que ele fazia sendo a sua liberdade, era a sua escravidão.
De fato, como podia um operário em construção compreender por que um tijolo valia mais do que um pão? Tijolos ele empilhava com pá, cimento e esquadria, quanto ao pão, ele o comia... mas fosse comer tijolo! E assim operário ia com suor e com cimento erguendo uma casa aqui adiante um apartamento, além uma igreja, à frente um quartel e uma prisão: prisão de que sofreria, não fosse, eventualmente, um operário em construção. Mas ele desconhecia esse fato extraordinário: que o operário faz a coisa e a coisa faz o operário. De forma que, certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela mesa – garrafa, prato, facão era ele quem os fazia. Ele, humilde operário, um operário em construção. Olhou em torno: gamela, banco, enxerga, caldeirão, vidro, parede, janela, casa, cidade, nação! Tudo, tudo o que existia era ele quem o fazia. Ele, um humilde operário um operário que sabia exercer a profissão.
Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quanto aquele humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia, que ele mesmo levantara. Um mundo novo nascia, de que sequer suspeitava. O operário emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, de operário em construção e olhando bem para ela teve num segundo a impressão de que não havia no mundo coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão desse instante solitário que, tal sua construção cresceu também o operário. Cresceu em alto e profundo em largo e no coração e como tudo que cresce ele não cresceu em vão, pois além do que sabia – exercer a profissão – o operário adquiriu uma nova dimensão: a dimensão da poesia, e um fato novo se viu que a todos admirava: o que o operário dizia outro operário escutava.
E foi assim que o operário do edifício em construção. Que sempre dizia SIM, começou a dizer NÃO. E aprendeu a notar coisas a que não dava atenção:
Notou que sua marmita era o prato do patrão. Que sua cerveja preta era o uísque do patrão, que seu macacão zuarte era o terno do patrão, que o casebre onde morava era a mansão do patrão, que seus dois pés andarilhos eram as rodas do patrão.
Que a dureza do seu dia era a noite do patrão, que sua imensa fadiga era amiga do patrão. E o operário disse: NÃO! E o operário fez-se forte na sua resolução. Como era de se esperar, as bocas da delação, começaram a dizer coisas aos ouvidos do patrão, mas o patrão não queria nenhuma preocupação – “convençam-no do contrário” – disse ele sobre o operário, e ao dizer isso sorria. Dia seguinte, o operário ao sair da construção viu-se de súbito cercado dos homens da delação e sofreu, por destinado sua primeira agressão. Teve seu rosto cuspido, teve seu braço quebrado, mas quando foi perguntado o operário disse: NÃO!
Em vão sofreria o operário sua primeira agressão. Muitas outras se seguiram, muitas outras seguirão. Porém, por imprescindível ao edifício em construção seu trabalho prosseguia e todo o seu sofrimento misturava-se ao cimento da construção que crescia.
Sentido que a violência não dobraria o operário, um dia tentou o patrão, dobrá-lo de modo vário. De sorte que o foi levando ao alto da construção e num momento de tempo mostrou-lhe toda a região e apontando-a ao operário, fez-lhe esta declaração: - “dar-te-ei todo esse poder e a sua satisfação, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quiser. Dou-te tempo de lazer, dou-te tempo de mulher. Portanto, tudo o que vês será teu se mo adorares e, ainda mais, se abandonares o que te faz dizer NÃO.”
Disse, e fitou o operário que olhava e que refletia, mas o que via o operário o patrão nunca veria. O operário via casas e dentro das estruturas via coisas, objetos, produtos, manufaturas. Via tudo o que fazia e em cada coisa que via misteriosamente havia a marca de sua mão. E o operário disse: NÃO! – “loucura, mentira!” – disse o operário, “não podes dar-me o que é meu.”
E um grande silêncio fez-se dentro do seu coração, um silêncio de martírios, um silêncio de prisão. Um silêncio povoado de pedidos de perdão, um silêncio apavorado com o medo em solidão. Um silêncio de torturas e gritos de maldição, um silêncio de fraturas a se arrastarem no chão. E o operário ouviu a voz de todos os seus irmãos. Os seus irmãos que morreram por outros que viverão. Uma esperança sincera cresceu no seu coração e dentro da tarde mansa agigantou-se a razão. De um homem pobre e esquecido, razão, porém que fizera em operário construído o operário em construção.
(Vinícius de Moraes)
PROBLEMATIZAÇÃO

1. Faça um texto argumentativo discorrendo sobre a mensagem do poema.

2. A consciência sobre o que fazemos pode mudar nossas vidas? Disserte sobre o assunto.


5. IDEOLOGIA E DOMINAÇÃO SOCIAL

IDEOLOGIA
A dissimulação da realidade.
A palavra ideologia pode assumir diversos significados. Criada pelo filósofo Destutt de Tracy, queria dizer ciência das ideias, compreendendo o estudo da origem e do desenvolvimento das ideias. Posteriormente passou a significar as ideias próprias de certos grupos sociais e políticos. Mas por influência de Karl Marx a palavra ideologia tornou-se largamente utilizada na filosofia e nas ciências humanas com um significado mais especifico. Designa os sistemas de ideias que elaboram uma compreensão da realidade para ocultar ou dissimular o domínio de um grupo social sobre outro.
Nesse sentido, a ideologia tem funções como a de preservar a dominação de classes apresentando uma explicação apaziguadora para as diferenças sociais. Seu objetivo é evitar um conflito aberto entre opressores e oprimidos.
A ideologia é, portanto, uma forma de consciência da realidade, mas uma consciência parcial, ilusória e enganadora que se baseia na criação de conceitos e preconceitos como instrumentos de dominação.
Segundo a filósofa brasileira Marilena Chauí, pode-se resumir a noção de ideologia nos seguintes traços gerais:
Ø Anterioridade: a ideologia predetermina o pensamento e a ação, desprezando a história e a prática na qual cada pessoa se insere, vive e produz.
Ø Generalização: a ideologia tem como finalidade produzir um consenso coletivo, um senso comum em torno de certas teses e valores. Visa ocultar a origem dos interesses sociais específicos que nascem da divisão da sociedade em classes.
Ø Lacuna: a ideologia desenvolve sobre uma lógica construída na base de lacunas, de omissões, de silêncios e de saltos. Uma logia montada para ocultar em vez de revelar. A eficiência de uma ideologia depende de sua capacidade para ocultar sua origem, sua lacuna e sua finalidade. Suas verdades devem parecer naturais, plenamente justificadas, validas para todos os homens e para todo o sempre.

A lógica ideológica só pode manter-se pela ocultação de sua gênese.



A VONTADE SEM FORÇA

A generalização da afirmativa “querer é poder” oculta o peso enorme das desigualdades sociais. Pretende convencer os fracassados de que eles são os únicos culpados pelo próprio fracasso. Não se pode fazer do fator vontade pessoal a única força capaz de nos levar à conquista dos nossos desejos.
A realidade histórico-social exerce grande influência sobre a vida e a vontade das pessoas. Assim, o problema da força de vontade não é uma simples questão de qualidade subjetiva, algo inato, dos indivíduos. A vontade é motivada ou bloqueada também pelo meio e as circunstâncias em que vivem as pessoas.
Só uma reflexão ampla dos problemas que envolvem a formação da vontade nos ajudará a compreender por que alguns têm força de vontade enquanto muitos têm uma vontade sem força.

IDEOLOGIA X FILOSOFIA
A força da teoria contra as ilusões ideológicas
A palavra teoria significa uma visão explicativa de conjunto lançada sobre a realidade. A teoria nasce e se desenvolve por meio de um trabalho árduo, que une ação e reflexão. Implica a elaboração de hipóteses sobre um determinado fenômeno e a contínua verificação dessas hipóteses, para confirmá-las ou corrigi-las.
A teoria filosófica constitui uma construção aberta, dinâmica e criadora. Ao contrário, as ideologias são doutrinas fechadas, rígidas, pretensamente completas, mas na verdade lacunares. O verdadeiro teórico se caracteriza pelo rigor de suas concepções. O ideológico, pela rigidez de suas pregações. O primeiro tem consciência dos diferentes meios de abordar, conhecer e sentir a realidade. O segundo é marcado pelo dogmatismo estéril, cristalizado numa visão unilateral do mundo.
As teorias filosóficas são reflexões imbuídas do desejo de atingir a verdade. A ideologia é a racionalização que estabelece verdades para sustentar desejos.
A filosofia nos ajuda a desmascarar o discurso ideológico.

A PARCIALIDADE DA RACIONALIZAÇÃO IDEOLÓGICA

O termo racionalizar significa basicamente tornar algo racional.
APROFUNDANDO O ESTUDO
O poeta e teatrólogo alemão Bertolt Brecht é criador de uma dramaturgia marcada pela preocupação em despertar a consciência social e instigar a participação política das pessoas. No poema seguinte ele lança perguntas demolidoras para questionar a visão tradicional da história.

PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊ

Quem construiu a Tebas das sete portas?
Nos livros constam os nomes dos reis.
Os reis arrastaram os blocos de pedra?
E a Babilônia tantas vezes destruída
Quem a ergue outras tantas?
Em que casas da Lima radiante de ouro
Moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros
Na noite em que ficou pronta a Muralha da China?
A grande Roma está cheia de arcos de triunfo.
Quem os levantou?
Sobre quem triunfaram os césares?
A decadência Bizâncio só tinha palácios
Para seus habitantes?
Mesmo na legendária Atlântida,
Na noite em que o mar a engoliu,
Os que se afogavam gritavam pelos seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou a índia.
Ele sozinho?
César bateu os gauleses.
Não tinha pelo menos um cozinheiro consigo?
Felipe da Espanha chorou quando sua Armada naufragou
Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu, além dele?
Uma vitória em cada página.
Quem cozinhava os banquetes da vitória?
Um grande homem a cada dez anos.
Quem pagava suas despesas?

Tantos relatos.
Tantas perguntas.

PROBLEMATIZAÇÃO
1. Elabore um texto parafraseando (reinventando) o poema de Brecht. Utilize como tema a história do Brasil.


6. O MUNDO DOS VALORES

Valores morais e não-morais
Os objetos valiosos podem ser naturais, isto é, como aqueles que existem originariamente à margem ou independentemente do trabalho humano (o ar, a água ou uma planta silvestre), ou artificiais, produzidos ou criados pelo homem (como as coisas úteis ou as obras de arte). Mas, desses dois tipos de objetos, não se pode dizer que sejam bons de um ponto de vista moral; os valores que encarnam ou realizam são, em casos distintos, os da utilidade ou da beleza. Às vezes se costuma falar da bondade desses objetos e, por essa razão, empregam-se expressões como as seguintes: “este é um bom relógio”, “a água que agora estamos bebendo é boa”, “X escreveu um bom poema” etc. Mas o uso de bom em semelhantes expressões não possui nenhum significado moral. Um bom relógio é um relógio que realiza positivamente o valor correspondente: o da utilidade, ou seja, que cumpre satisfatoriamente a necessidade humana concreta à qual serve. Um bom relógio é um objeto útil. E algo análogo podemos dizer da água quando a qualificamos como boa; com isso, queremos dizer que satisfaz positivamente, do ponto de vista de nossa saúde, a necessidade orgânica a qual deve satisfazer. E um bom poema é aquele que, por sua estrutura, por sua linguagem, realiza satisfatoriamente, como objeto estético ou obra de arte, a necessidade estética humana à qual serve.
Em todos esses casos, o vocábulo bom sublinha o fato de que o objeto em questão realizou positivamente o valor que era chamado a encarnar, servindo adequadamente ao fim ou à necessidade humana respectiva. Em todos esses casos, também, a palavra bom tem um significado axiológico positivo – com relação ao valor utilidade ou ao valor beleza -, mas não tem significado moral algum.
(...) Podemos falar da bondade de uma faca enquanto cumpre positivamente a função de cortar para a qual foi fabricada. Mas a faca – e a função relativa – pode estar a serviço de diferentes fins; pode ser utilizada, por exemplo, para realizar um ato mau sob o ângulo moral, como é o assassinato de uma pessoa. Desde o ponto de vista de sua utilidade ou funcionalidade, a faca não deixará de ser boa por ter servido para realizar um ato repreensível. Pelo contrário, continua sendo boa e tanto mais quanto mais eficientemente tiver servido ao assassino, mas essa bondade instrumental ou funcional está alheia a qualquer qualificação moral, apesar de ter servido de meio ou instrumento para realizar um ato moralmente mau. Não é a faca – eticamente neutra, como o são em geral os instrumentos, as máquinas ou a técnica em geral – que pode ser qualificada de um ponto de vista moral, mas o seu uso; isto é, os atos humanos de utilização a serviço de determinados fins, interesses e ou necessidades.
Vê-se, então, que os objetos úteis, ainda que se trate de objetos produzidos pelo homem, não encarnam valores morais, embora possam encontrar-se numa relação instrumental com esses valores (como vimos no exemplo da faca). (...)
Os valores morais existem unicamente em atos ou produtos humanos. Tão-somente o que tem um significado humano pode ser avaliado moralmente, mas, por sua vez, tão-somente os atos ou produtos que os homens podemos reconhecer como seus, isto é, os realizados consciente e livremente, e pelos quais se lhes pode atribuir uma responsabilidade moral. Nesse sentido, podemos qualificar moralmente o comportamento dos indivíduos ou de grupos sociais, as intenções de seus atos e seus resultados e consequências, as atividades das instituições sociais etc. Ora, um mesmo produto humano pode assumir vários valores, embora um deles seja o determinante. Assim, por exemplo, uma obra de arte pode ter não só um valor estético, mas também político ou moral. É inteiramente legitimo abstrair um valor dessa constelação de valores, mas com a condição de não reduzir um valor ao outro.
Posso julgar uma obra de arte por seu valor religioso ou político, mas sempre com a condição de nunca pretender deduzir desses valores o seu valor propriamente estético. Quem condena uma obra de arte sob o ponto de vista moral nada diz sobre o seu valor estético; simplesmente está afirmando que, nessa obra, não se realiza o valor moral que ele julga que nela deveria realizar-se. Por conseguinte, um mesmo ato ou produto humano pode ser avaliado a partir de diversos ângulos, podendo encarnar ou realizar diferentes valores. Mas, ainda que os valores se juntem num mesmo objeto, não devem ser confundidos.
(SANCHEZ VÁSQUEZ, Adolfo. Ética. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1970. pp. 127-29)

PROBLEMATIZAÇÃO

Um mesmo objeto pode ter diversos valores. Explique e dê exemplos.

Quando se pode falar em valor moral propriamente dito?

O QUE É VALOR

Existe o mundo dos valores e o mundo das coisas. Mas não podemos dizer que os valores são da mesma maneira que as coisas são. Isto é, não existe o valor em si enquanto coisa, mas o valor é sempre uma relação entre o sujeito que valora e o objeto valorado.
Atribuir um valor a alguma coisa é não ficar indiferente a ela. Portanto, a não-indiferença é a principal característica do valor. Isso significa que os valores existem na ordem da afetividade, ou seja, não ficamos indiferentes diante de alguma coisa ou pessoa, pois somos sempre afetados por elas de alguma forma.
Valorar é uma experiência fundamentalmente humana que se encontra no centro de toda escolha de vida. Fazer um plano de ação nada mais é do que dar prioridade a certos valores, ou seja, escolher o que é melhor e evitar o que é prejudicial para se atingir os fins propostos.
A consequência de qualquer valoração é dar regras para a ação pratica. Assim, se o ar é um valor para o ser vivo, preciso evitar que a poluição atmosférica prejudique a qualidade desse bem indispensável. Se a credibilidade é um valor, não posso estar o tempo todo mentindo, caso contrario as relações humanas ficariam prejudicadas. Portanto, diante daquilo que é, a experiência dos valores orienta para o que deve ser.
O que moral? Moral é o conjunto de regras de conduta consideradas válidas para um grupo ou para uma pessoa.




DE ONDE VÊM OS VALORES?

Se os valores não são coisas, pois resultam da experiência vivida pelo homem ao se relacionar com o mundo e com os outros homens, talvez se possa concluir que tais experiências variam conforme o povo e a época.
Os valores são em parte herdados da cultura. Aliás, a primeira compreensão que temos do mundo é fundada no solo dos valores da comunidade a que pertencemos. Os valores existem para que a sociedade subsista, mantenha a integridade e possa se desenvolver. A moral existe para se viver melhor.
Mesmo que varie o conteúdo das regras morais, conforme a época ou lugar, todas as comunidades têm a necessidade formal de regras morais. A coragem é um valor formal cujo conteúdo varia. A amizade é um valor universal, a sua expressão varia conforme os costumes.

SOCIAL E PESSOAL

Nem sempre as regras morais visam ao bem da comunidade enquanto um todo. Por mais estável que seja a sociedade, sempre há mudança das relações entre as pessoas e grupos, na luta pela subsistência. Então, certas regras valem em determinadas circunstâncias e deixam de valer quando ocorrem alterações nas relações humanas. No entanto, existe a tendência de se resistir às mudanças, e, quando as regras permanecem inflexíveis, sedimentadas, acabam sendo esvaziadas de seu conteúdo vital e ficam caducas e sem sentido. A sociedade passa por um momento de crise para cuja superação são exigidas inventividade e coragem.
Geralmente as morais conservadoras se petrificam quando a sociedade se divide em grupos antagônicos nos quais certos setores desejam manter privilégios. Nesse caso o que é mostrado como bom para todos na verdade só é bom para os que se acham no poder.
Para manter o status quo a situação vigente de forma inalterada predominam a intolerância e a negação do pensamento divergente. Por exemplo, o fanatismo religioso considera herético todo pensamento que se distancia da ortodoxia. Na sociedade escravista persistem os preconceitos relativos à raça escravizada.
A experiência efetiva da vida moral supõe o confronto continuo entre a moral constituída e a moral constituinte, representada pela crítica aos valores ultrapassados. O esforço de construção da vida moral exige a discussão constante dos valores vigentes, a fim de verificar em que medida sua realização se faz em favor da vida ou da alienação.


O SUJEITO MORAL

Se cada um pudesse fazer o que bem entendesse, não haveria moral propriamente dita. O sujeito moral tem a intuição dos valores como resultado da intersubjetividade da relação com os outros. Não é o sujeito solitário que se torna moral, pois a moral se funda na solidariedade: é pela descoberta e pelo reconhecimento do outro que cada homem se descobre a si mesmo. Intuir o valor é descobrir aquele que convém à sobrevivência e felicidade do sujeito enquanto pertencente a um grupo.
O sujeito moral surge quando ao responder a pergunta, “como devo viver?”, o faz com pretensão de validade universal. O sujeito moral não é o eu empírico, individual, egoísta, mas é o eu enquanto capaz de reconhecer o outro como sendo outro eu: o outro é tão importante quanto eu sou.
Ninguém nasce moral, mas torna-se moral. Há uma longa caminhada a ser percorrida para a aprendizagem de descentralização do eu subjetivo, a fim de superar o egocentrismo infantil e tornar-se capaz de “con-viver”.


O HOMEM VIRTUOSO

O homem virtuoso é aquele que tem capacidade de ação, é potencia. Para Kant, a virtude é a força de resolução que o homem revela na realização do seu dever.
A virtude, enquanto disposição para querer o bem, supõe a coragem de assumir os valores escolhidos e enfrentar os obstáculos que dificultam a ação.
Por isso, a noção de virtude não se restringe a apenas um ato moral, mas consiste na repetição e continuidade do agir moral. Aristóteles já afirmava que uma andorinha, só, não faz verão, para dizer que a virtude não se resume no ato ocasional e fortuito, mas precisa se tornar um hábito.


OBIRGAÇÃO E LIBERDADE

A moral exige obrigação e liberdade.
Se a construção da consciência moral se realiza a partir da aprendizagem da convivência entre os homens, é preciso admitir que o ato moral é um ato de vontade. Como tal distingue-se do desejo, já que este é involuntário, surge com maior ou menor força e traz a exigência de realização.
A moral surge do controle do desejo, não se trata da repressão do desejo, mas a consciência clara do indivíduo que escolhe e decide o que deve ser feito em determinada situação.
O ato voluntário resulta da consciência da obrigação moral. Só que o dever moral não pode ser entendido como constrangimento externo, como coação de uns sobre outros. A submissão ao dever precisa ser livremente assumida. Só há autêntica moral quando o indivíduo age por sua própria iniciativa, enquanto ser de liberdade. Autonomia significa autodeterminação, capacidade de decidir por si próprio a aprtir dos condicionamentos e determinismos.
Todo ato moral está sujeito à sanção e merece aprovação ou desaprovação, elogio ou censura. O senso moral reage porque nossa afetividade é atingida.


PROGRESSO MORAL

Nem sempre a mudança moral equivale a progresso moral. Existe progresso quando se dá um avanço com melhoria de qualidade.
Quais seriam os critérios para avaliar o progresso moral?
Ø Ampliação da esfera moral: certos atos, cujo cumprimento antes era garantido por força legal, por constrangimento social ou por imposição religiosa, passam a ser cumpridos por exclusiva obrigação moral. A diminuição da esfera moral acontece quando vira recompensa.
Ø Caráter consciente e livre da ação: a responsabilidade moral está na exigência de um compromisso livremente assumido. Responsável é a pessoa que reconhece seus atos como resultantes da vontade e responde pelas conseqüências deles.
Ø Grau de articulação entre interesse coletivos e pessoais: enquanto nas tribos primitivas o coletivo predomina sobre o pessoal, nas sociedades contemporâneas o individualismo exacerbado tende a desconsiderar os interesses da coletividade. É importante que o desenvolvimento de cada um não seja feito à revelia do desenvolvimento dos demais.
Não basta reformar o individuo para reformar a sociedade. Um projeto moral desligado do projeto político está destinado ao fracasso. Os dois processos devem caminhar juntos, pois formar o homem plenamente moral só é possível na sociedade que também se esforça para ser justa.


7. A LIBERDADE

O HOMEM É DETERMINADO?

Se o vôo livre do pássaro é uma ilusão, da mesma forma podemos dizer que incorremos em engano semelhante ao considerarmos o homem capaz de liberdade absoluta.
Comecemos refletindo sobre as conquistas do método científico. Vimos que a construção do conhecimento científico se faz a partir do princípio do determinismo, segundo o qual tudo que existe no mundo está sujeito. E a ciência só se torna possível porque o conhecimento da relação necessária entre causa e efeito – isto é, o conhecimento dos determinismos naturais – permite a descoberta das leis da natureza, a partir das quais são feitas previsões e desenvolvidas as técnicas.
Transpondo tais considerações do campo da ciência da natureza para o nível humano, não há como negar que também o homem se acha preso a determinismos psicológicos na atividade psíquica normal e cotidiana, pela qual o homem entra em contato com o mundo para conhecê-lo e reagir afetivamente a ele. Por exemplo, se nos preocupamos com métodos de ensino, é preciso antes compreender os mecanismos da inteligência humana tais como memória, invenção, intuição, abstração e assim por diante. Por isso, a aprendizagem da aritmética era tão penosa antigamente: desconhecendo-se que o pensamento infantil ainda é concreto, exigia-se da criança o uso do raciocínio abstrato, cujo desenvolvimento só acontece a partir da adolescência.
Watson e Skinner, psicólogos contemporâneos pertencentes à corrente comportamentalista, consideram que o homem tem a ilusão de que é livre, quando na verdade apenas desconhece as causas que agem sobre ele. Com o desenvolvimento da ciência do comportamento seria possível conhecer de tal forma as motivações que daria para prever e, portanto, planejar o comportamento humano.
Além de todos esses aspectos determinantes, podemos acrescentar os determinismos culturais: ao nascer, o homem se encontra em um mundo já constituído, recebendo como herança a moral, a religião, a organização social e política, a língua, enfim os costumes que não escolheu e que de certa forma determinam sua maneira de sentir e pensar.
No século XIX, o filósofo francês Taine, discípulo de Augusto Comte, considerava que o homem não é livre, mas determinado pelo momento, pelo meio e pela raça. Essa concepção influenciou bastante os intelectuais do século XIX, a literatura naturalista é uma expressão de tal concepção. Basta lermos O Cortiço e O Mulato de Aluísio Azevedo, para identificarmos as “forças incontroláveis” do meio e da raça agindo de forma inexorável no comportamento das pessoas.

AS CONDIÇÕES DA LIBERDADE

Para os deterministas, tudo tem uma causa, inclusive a ação humana. Podemos até não conhecer tais causas, mas elas existem. Levar essas conclusões até as últimas conseqüências é admitir que o homem não é livre.
Afinal, o homem é livre ou determinado?
Não há como negar o determinismo que agem sobre o homem, já que ele se encontra situado no tempo e no espaço, tendo recebido uma herança cultural específica. Mas o homem não é apenas essa situação dada, é também a consciência do determinismo. Isso significa que, ao tomar conhecimento das causas que agem sobre ele, é capaz de realizar uma ação transformadora, a partir de um projeto de ação. Deixa de ser passivo e passa a ser atuante.
Estamos rejeitando qualquer discussão puramente teórica a respeito da liberdade, o que nos levaria a abstrações atemporais. É na ação, é na prática que se constrói a liberdade, a partir dos desafios que os problemas do seu existir apresentam ao homem. Tais soluções não resultam de alternativas dadas para serem escolhidas, mas supõem imaginação criadora, invenção, “ardis da razão”. Há um velho ditado indiano que diz: “Onde quer que o homem ponha o pé, pisa sempre cem caminhos”.
O homem, enquanto ser consciente é capaz de reconhecer as forças que agem sobre ele. Esse conhecimento torna-lhe possível o exercício da vontade, presente em sua ação transformadora sobre a natureza.
O filósofo francês Alain dá o exemplo do barco a vela: “Quando eu era pequeno, e antes que tivesse visto o mar, acreditava que os barcos iam sempre para onde o vento os empurrava”. Mas na verdade, o velejador usa o barco de acordo com leis invariáveis, isto é, usa a força do vento para ir para onde quiser: “Orienta sua vela pelo mastro, vergas e cordames, apóia seu leme na onda corrente, corta caminho com sua marcha oblíqua, vira e recomeça. Avançando contra o vento pela própria força do vento”.
O velejador aprendeu a conhecer o mar, o vento, a vela, o casco, para saber como aplicar a inteligência e dirigir o barco para a direção escolhida. Outros exemplos: só podemos curar a doença ao conhecer suas causas; só construímos um prédio se respeitamos as leis da física; só fabricamos um avião se conhecemos as leis da aerodinâmica.
Da mesma forma, o conhecimento das paixões humanas é condição para que o homem se torne mais livre e se desenvolva como pessoa integral.
Se em um primeiro momento a criança é levada pela preponderância do desejo, ao mesmo tempo em que é constrangida pelas normas que lhe são exteriores, a educação consiste no esforço de superação de tal estádio. O universo infantil é marcado pela heteronomia, em que as ações são comandadas “de fora”, pelos valores herdados dos pais e da sociedade em que ela vive. Quando a educação é boa, a criança deve caminhar em direção à autonomia, à deliberação, à capacidade de organização autônoma das regras.
Bem sabemos que nem sempre é isso que ocorre de fato.

LIBERDADE

Quando nos referimos à liberdade de maneira geral, é preciso admitir que são vários os enfoques pelos quais podemos compreendê-la. Se ninguém é solitário, pois convive na comunidade dos homens, a liberdade é um desafio que permeia todos os campos da atividade humana.
Assim, podemos falar em liberdade ética, quando nos referimos ao sujeito moral, capaz de decidir com autonomia a respeito de como deve se conduzir em relação a si mesmo e aos outros. Kant dizia que a liberdade consiste na obediência às leis que o próprio sujeito moral se impõe.
No entanto, ser autônomo é um desafio que muitas pessoas não conseguem suportar. Os riscos de enganos, a intranqüilidade, a angústia da decisão e a responsabilidade que o ato livre acarreta fazem com que a liberdade seja considerada antes um pesado encargo do que privilégio. Por isso há tantos que a ela renunciam, para se acomodarem na segurança das verdades dadas.
A LIBERDADE ECONÔMICA não deve ser confundida com a liberdade absoluta nos negócios. Por um lado, porque toda atividade produtiva supõe relações de dependência entre as pessoas, e, por outro, porque convém precaver-se contra as aparências da liberdade. A livre iniciativa, fundada na idéia de que “deve vencer o melhor”, muitas vezes nos faz esquecer de que em uma competição esportiva, por exemplo, os concorrentes sempre a iniciam em pé de igualdade: mesmo quando os talentos são diferentes, todos começam juntos na linha de partida.
O mesmo não ocorre no sistema econômico fortemente marcado por privilégios e disputas desiguais. Por exemplo, o parque industrial de um país subdesenvolvido não pode disputar sem prejuízos com poderosas multinacionais. Da mesma forma, o contrato “livre” que o operário assina esconde a assimetria das relações, pois, em situações em que há grande oferta de mão-de-obra, recusar um baixo salário significa muitas vezes “optar” pelo desemprego.
A LIBERDADE JURÍDICA é uma das conquistas das modernas sociedadeS democráticas que defendem a igualdade perante a lei. Ninguém pode ser submetido à servidão e à escravidão; qualquer um tem a garantia da liberdade de locomoção, pensamento, agremiação e ação, nos limites estabelecidos pela lei.
A aristocracia supõe a existência de indivíduos “especiais” que teriam privilégios. Foi contra as vantagens da nobreza que a burguesia se insurgiu no século XVIII, implantando os ideais contidos na Declaração dos Direitos que serviam de inspiração para a construção da nova ordem jurídica daí em diante.
No entanto, nem todos têm acesso à lei de igual maneira. A justiça é lenta e cara e o poder econômico interfere sempre que pode. Ao se fazer as leis de um país, é quase impossível evitar a interferência daqueles que detêm algum poder e desejam manter privilégios. Por ocasião da Constituinte de 1988, a discussão a respeito dos mais diversos assuntos, como reforma agrária, aposentadoria e verbas para educação pública, foi alvo de pressões as mais diversas, não podendo ser subestimadas as forças decorrentes do poder econômico.
Até aqui nos referimos ao homem enquanto participante da sociedade civil, isto é, enquanto pai, filho, trabalhador, empresário, estudante e assim por diante. Os espaços da casa, da fábrica, da escola são caminhos possíveis da liberdade (ou não!...).
A LIBERDADE POLÍTICA se coloca no espaço público, no espaço do cidadão, isto é, do homem enquanto participante dos destinos da cidade.
Há liberdade política quando o cidadão tem conhecimento do que acontece nas diversas instancias do poder público. Além do conhecimento, é preciso que exista a liberdade de opinião, de voto, de associação, enfim do livre exercício da cidadania, com suas múltiplas características.
Ser livre em política é amadurecer o suficiente para aceitar o pluralismo, e, portanto, conviver com a diferença e os inevitáveis confrontos dela decorrentes. É amadurecer para superar os interesses pessoais quando isso for exigido pelo interesse coletivo.
La Boiétie, filósofo do século XVI, perguntava-se, um tanto perplexo, por que o homem troca a liberdade pela “servidão voluntária”, essa estranha expressão aparentemente inconcebível: como é possível que o homem, sendo essencialmente liberdade, deseje se submeter a outro?
Não precisamos ir longe para confirmar isso: quando vivemos situações de relativa intranqüilidade, com muitas greves, inflação ou alto índice de criminalidade, sempre surgem pessoas que anseiam por um “braço forte” que “ponha ordem na casa”. Pede-se a volta do “pai onipotente”, quer seja Hitler na Alemanha nazista, quer sejam os generais do golpe militar no Brasil.
Podemos concluir que a liberdade não é alguma coisa que é dada, mas resulta de um projeto de ação. É uma árdua tarefa cujos desafios nem sempre são suportados pelo homem, daí resultando os riscos de perda da liberdade. Como vimos, os descaminhos da liberdade surgem quando ela é sufocada à revelia do sujeito – no caso da escravidão, da prisão injusta, da exploração do trabalho, do governo autoritário, etc. – ou quando o próprio homem a ela abdica, seja por comodismo, medo ou insegurança.
Cabe a reflexão filosófica o olhar atento para denunciar os atos de prepotência bem como a ação silenciosa da alienação e da ideologia.

O HOMEM É LIBERDADE
Dostoiévski escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nos valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. O existencialista não crê na força da paixão. Não pensará nunca que uma bela paixão é uma torrente devastadora que conduz fatalmente o homem a certos atos e que, por conseguinte, tal paixão é uma desculpa. Pensa, sim, que o homem é responsável por essa sua paixão. O existencialista não pensará também que o homem pede auxílio num sinal dado sobre a terra, e que o há de orientar; porque pensa que o homem decifra ele mesmo esse sinal como lhe aprouver. Pensa, portanto, que o homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está condenado a cada instante a inventar o homem. Disse Ponge num belo artigo: “O homem é o futuro do homem”. É perfeitamente exato. Somente, se se entende por isso que tal futuro está inscrito no céu, que Deus o vê, nesse caso é um erro, até porque nem seria um futuro. Mas se se entender por isso que, seja qual for o homem, tem um futuro virgem que o espera, então essa frase está certa.
(SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Col. Os pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1973. p. 15-6)
PROBLEMATIZAÇÃO

1. Faça uma dissertação a partir da frase de Ponge “O homem é o futuro do homem”.


8. CONCEPÇÕES ÉTICAS

AGIR DE ACORDO COM O BEM

Podemos dizer que a reflexão ética se inicia no mundo ocidental na Grécia antiga, no séc. V a.C., quando se acentua o desligamento da compreensão de mundo baseada nos relatos míticos. Os sofistas rejeitam o fundamento religioso da moral e consideram que os princípios morais resultam das convenções sociais. Por essa época destaca-se o esforço de Sócrates no sentido de se contrapor à posição dos sofistas, buscando os fundamentos da moral não nas convenções, mas na própria natureza humana. Sócrates discute inicialmente sobre as ações do homem ímpio ou santo conforme a ordem constituída, para então se perguntar em que consiste a impiedade e a santidade em si, independentemente dos casos concretos.
Para Aristóteles, todas as atividades humanas aspiram a algum bem, dentre os quais o maior é a felicidade; mas para ele a felicidade não consiste nos prazeres nem na riqueza: considerando que o pensar é o que mais caracteriza o homem, conclui que a felicidade consiste na atividade da alma segundo a razão.
Para os hedonistas, o bem se encontra no prazer. Em um sentido bem genérico, podemos dizer que a civilização contemporânea é hedonista quando identifica a felicidade com a aquisição de bens de consumo: ter uma bela casa, carro, boas roupas, boa comida, múltiplas experiências sexuais. E, também, na incapacidade de tolerar qualquer desconforto, seja uma simples dor de cabeça, seja o enfrentamento sereno das doenças e da morte.
No entanto, o principal representante do hedonismo grego, no século III a. C., Epicuro, considera que os prazeres do corpo são causa de ansiedade e sofrimento e, para que a alma permaneça imperturbável, é preciso, portanto, desprezar os prazeres materiais. Essa atitude o leva a privilegiar os prazeres espirituais, dentre os quais destaca aqueles referentes à amizade.
Na mesma época, o estóico Zeno de Cítio despreza os prazeres em geral, ao considerar que muitos males decorrem deles. Busca eliminar as paixões, que só produzem sofrimento, e considera que a vida virtuosa do homem sábio, que vive de acordo com a natureza e a razão, consiste em aceitar com impassibilidade o destino e o sofrimento.
O estoicismo foi retomado em Roma por Sêneca e por Marco Aurélio, imperador e filosofo. O ideal ascético, que foi muito bem aceito pelo cristianismo medieval, deriva desse modo de pensar. A ascesse consiste no aperfeiçoamento da vida espiritual por meio de práticas de mortificação do corpo como jejum, abstinência, flagelação.
Para os filósofos e teólogos medievais a felicidade plena só se encontra na vida futura, realizando-se em Deus.
Variadas tem sido as soluções encontradas para as questões éticas no decorrer da história da filosofia, mas desde a expansão do cristianismo, a cultura ocidental ficou marcada pela tradição moral cujo fundamento se encontra nos valores religiosos e na crença na vida depois da morte. Nessa perspectiva, os valores são considerados transcendentes, porque resultam de doação divina, o que costuma levar à identificação do homem moral com o homem temente a Deus.
No entanto, a partir da Idade Moderna, culminando no movimento da Ilustração no séc. XVIII, a moral se torna laica. Portanto, ser moral e ser religioso deixam de ser inseparáveis, tornando-se perfeitamente possível admitir que um homem ateu seja moral, e, mais ainda, que o fundamente dos valores não se encontra em Deus, mas no próprio homem.

SENSO MORAL E CONSCIENCIA MORAL

Muitas vezes, tomamos conhecimento de movimentos nacionais e internacionais de luta contra a fome, ficamos sabendo que, em outros paises e no nosso, milhares de pessoas, sobretudo crianças e velhos, morrem de penúria e inanição. Sentimos piedade. Sentimos indignação diante de tamanha injustiça. Sentimos responsabilidade. Movidos pela solidariedade, participamos de campanhas contra a fome. Nossos sentimentos e nossas ações exprimem nosso senso moral.
Quantas vezes, levados por algum impulso incontrolável ou por alguma emoção forte, fazemos alguma coisa de que, depois, sentimos vergonha, remorso, culpa. Gostaríamos de voltar atrás no tempo e agir de modo diferente. Esses sentimentos também exprimem nosso senso moral.
Em muitas ocasiões, ficamos contentes e emocionados diante de uma pessoa cujas palavras e ações manifestam honestidade, honradez, espírito de justiça, altruísmo, mesmo quando tudo isso lhe custa sacrifícios. Sentimos que há grandeza e dignidade nessa pessoa. Temos admiração por ela e desejamos imita-la. Tais sentimentos e admiração também exprimem nosso senso moral.
Não raras vezes somos tomados pelo horror diante da violência: chacina de seres humanos e animais, linchamentos, assassinatos brutais, estupros, genocídio, torturas e suplícios. Com freqüência, ficamos indignados ao saber que um inocente foi injustamente acusado e condenado, enquanto o verdadeiro culpado permanece impune. Sentimos cólera diante do cinismo dos mentirosos, dos que usam outras pessoas como instrumento para seus interesses e para conseguir vantagens à custa da boa-fé de outros. Todos esses sentimentos também manifestam nosso senso moral.
Vivemos certas situações, ou sabemos que foram vividas por outros, como situações de extrema aflição e angústia. Assim, por exemplo, uma pessoa querida, com uma doença terminal está viva apenas porque seu corpo está ligado a máquinas que a conservam. Suas dores são intoleráveis. Inconscientes, geme no sofrimento. Não seria melhor que descansasse em paz? Não seria preferível deixa-la morrer? Podemos desligar os aparelhos? Ou não temos o direito de fazê-lo? Que fazer? Qual a ação correta?
Uma jovem descobre que está grávida. Sente que seu corpo e seu espírito ainda não estão preparados para a gravidez. Sabe que seu parceiro, mesmo que deseje apóia-la, é tão jovem e despreparado quanto ela e que ambos não terão como responsabilizar-se plenamente pela gestação, pelo parto e pela criação de um filho. Ambos estão desorientados. Não sabem se poderão contar com o auxilio de suas famílias.
Se ela for apenas estudante, terá que deixar a escola para trabalhar, a fim de pagar o parto e arcar com as despesas da criança. Sua vida e seu futuro mudarão para sempre. Se trabalha, sabe que perderá o emprego, porque vive numa sociedade onde os patrões discriminam as mulheres grávidas, sobretudo as solteiras. Receia não contar com os amigos. Ao mesmo tempo, porém, deseja a criança, sonha com ela, mas teme dar-lhe uma vida de miséria e ser injusta com quem não pediu para nascer. Pode fazer um aborto? Deve fazê-lo?
Um pai de família desempregado, com vários filhos pequenos e a esposa doente, recebe uma oferta de emprego, mas que exige que seja desonesto e cometa irregularidades que beneficiem seu patrão. Sabe que o trabalho permitirá sustentar os filhos e o tratamento da esposa. Pode aceitar o emprego, mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou deve recusá-lo e ver os filhos com fome e a mulher morrendo?
Um rapaz namora, há tempos, uma moça de quem gosta muito e é por ela correspondido. Conhece outra. Apaixona-se perdidamente e é correspondido. Ama duas mulheres e ambas o amam. Pode ter dois amores simultâneos, ou estará traindo a ambas e a si mesmo? Deve magoar uma delas e a si mesmo, rompendo com uma para ficar com a outra? O amor exige uma única pessoa amada ou pode ser múltiplo? Que sentirão as duas mulheres, se ele lhes contar o que se passa? Ou deverás mentir para ambas? Que fazer? Se, enquanto está atormentado pela indecisão, um conhecido o vê ora com uma das mulheres, ora com a outra e, conhecendo uma delas, deverá contar a ela o viu? Em nome da amizade, deve falar ou calar?
Uma mulher vê um roubo. Vê uma criança maltrapilha e esfomeada rouba frutas e pães numa mercearia. Sabe que o dono da mercearia está passando por muitas dificuldades e que o roubo fará diferença para ele. Mas também vê a miséria e a fome da criança. Deve denunciá-la. Julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e que o proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou deverá silenciar, pois a criança corre o risco de receber punição excessiva, ser levada para a polícia, ser jogada novamente às ruas e, agora revoltada, passar do furto ao homicídio? Que fazer?
Situações como essas surgem sempre em nossas vidas. Nossas duvidas quanto à decisão a tomar não manifestam nosso senso moral, mas também põem a prova nossa consciência moral, pois exigem que decidamos o que fazer, que justifiquemos para nós mesmos e para os outros as razões de nossas decisões e que assumamos todas as conseqüências delas, porque somos responsáveis por nossas opções.
Todos os exemplos mencionados indicam que o senso moral e a consciência moral referem-se a valores (justiça, honradez, espírito de sacrifício, integridade, generosidade), a sentimentos provocados pelos valores (admiração, vergonha, culpa, remorso, contentamento, cólera, amor, duvida, medo) e a decisões que conduzem a ações com conseqüências para nós e para os outros. Embora os conteúdos dos valores variem, podemos notar quês estão referidos a um valor mais profundo, mesmo que apenas subentendido: o bom ou o bem. Os sentimentos e as ações, nascidos de uma opção entre o bom e o mau ou entre o bem e o mal, também estão referidos a algo mais profundo e subentendido: nosso desejo de afastar a dor e o sofrimento e de alcançar a felicidade, seja por ficarmos contentes conosco mesmos, seja por recebermos a aprovação dos outros.
O senso e a consciência moral dizem respeito a valores, sentimentos, intenções, decisões e ações referidas ao bem e ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem respeitos as relações que mantemos com os outros e, portanto, nascem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva.

JUÍZO DE FATO E DE VALOR

Se dissermos: “Esta chovendo”, estaremos enunciando um acontecimento constatado por nós e o juízo proferido é um juízo de fato. Se, porém, falarmos: a chuva é boa para as plantas ou a chuva é bela, estaremos interpretando e avaliando o acontecimento. Nesse caso, proferimos um juízo de valor.
Juízos de fato são aqueles que dizem o que as coisas são, como são e por que são. Em nossa vida cotidiana, mas também na metafísica e nas ciências, os juízos de fato estão presentes. Diferentemente deles, os juízos de valor, avaliações sobre coisas, pessoas, ações, situações e acontecimentos são proferidos na moral, nas artes, na política, na religião.
Juízos de valor avaliam coisas, pessoas, ações, experiências, acontecimentos, sentimentos, estados de espírito, intenções e decisões como bons ou maus, desejáveis ou indesejáveis.
Os juízos éticos de valor são também normativos, isto é, enunciam normas que determinam o dever ser de nossos sentimentos, nossos atos, nossos comportamentos. Soa juízos que enunciam obrigações e avaliam intenções e ações segundo os critérios do correto e do incorreto.
Os juízos éticos de valor nos dizem o que são o bem, o mal, a felicidade. Os juízos éticos normativos nos dizem que sentimentos, intenções, atos e comportamentos devemos ter ou fazer para alcançarmos o bem e a felicidade ... enunciam também que atos, sentimentos, intenções e comportamentos são condenáveis ou incorretos do ponto de vista moral.
Como se pode observar, senso moral e consciência moral são inseparáveis da vida cultural uma vez que esta define para seus membros os valores positivos e negativos que devem respeitar ou destacar.
Qual a origem da diferença entre os dois tipos de juízos? A diferença entre a Natureza e a cultura. A primeira, como vimos, é constituída por estruturas e processos necessários, que existem em si e por si mesmos, independentemente de nós: a chuva é um fenômeno meteorológico cujas causas e cujos efeitos necessários podemos constatar e explicar.
Por sua vez,a cultura nasce da maneira como os seres humanos interpretam a si mesmo e as suas relações com a natureza, acrescentando-lhe sentidos novos, intervindo nela, alternado-a através do trabalho e da técnica, dando-lhe valores. Dizer que a chuva é boa para as plantas pressupõe a relação cultural dos humanos com a natureza, através da agricultura. Considerar a chuva bela pressupõe uma relação valorativa dos humanos com a natureza, percebida como objeto de contemplação.
Freqüentemente, não notamos a origem cultural dos valores éticos, do senso moral e da ciência moral, porque somos educados para eles e neles, como se fossem naturais ou fáticos, existentes em si e por si mesmos. Para garantir a manutenção dos padrões morais através do tempo e sua continuidade de geração a geração, as sociedades tendem a naturalizá-los. A naturalização da existência moral esconde, portanto, o mais importante da ética: o fato de ela ser criação histórico-cultural.




ÉTICA E VIOLÊNCIA

Quando acompanhamos a historia das idéias éticas, desde a antiguidade clássica ate nossos dias, podemos perceber que, em seu centro, encontra-se o problema da violência dos meios para evitá-la, diminuí-la, controla-la. Diferentes formações sociais e culturais instituíram conjuntos de valores éticos como padrões de conduta, de relações intersubjetivas e interpessoais, de comportamentos sociais que pudessem garantir a integridade física e psíquica de seus membros e a conservação do grupo social.
Evidentemente, as várias culturas e sociedades não definiram nem definem a violência da mesma maneira, mas, ao contrario, dão-lhes conteúdos diferentes, segundo os tempos e os lugares. No entanto, malgrado as diferenças, certos aspectos da violência são percebidos da mesma maneira, nas varias culturas e sociedades, formando o fundo comum contra o qual os valores éticos são erguidos. Fundamentalmente, a violência é percebida como exercício da força física e da coação psíquica para obrigar alguém a fazer alguma coisa contraria a si, contraria aos seus interesses e desejos, contraria ao seu corpo e a sua consciência, causando-lhe danos profundos e irreparáveis, como a morte, a loucura, a auto-agressão ou a agressão aos outros.
Quando uma cultura e uma sociedade definem o que entendem por mal, crime e vício, circunscrevem aquilo que julgam violência contra um individuo ou contra o grupo, simultaneamente, erguem os valores positivos – o bem e a virtude – como barreiras éticas contra a violência.
Em nossa cultura, a violência é entendida como o uso da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário a sua natureza e ao seu ser. A violência é violação da integridade física e psíquica, da dignidade humana de alguém. Eis por que o assassinato, a tortura, a injustiça, a mentira, o estupro, a calunia, a má-fé, o roubo são considerados violência, imoralidade e crime.
Considerando que a humanidade dos humanos reside no fato de serem racionais, dotados de vontade livre, de capacidade para a comunicação e para a vida em sociedade, de capacidade para interagir com a natureza e com o tempo, nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do conhecimento e da ação, localizando a violência em tudo aquilo que traduz um sujeito à condição de objeto. Do ponto de visto ético, somos pessoas e não podemos ser tratados como coisas. Os valores éticos se oferecem, portanto, como expressão e garantia de nossa condição de sujeitos, proibindo moralmente o que nos transforme em coisa usada e manipulada por outros.
A ética é normativa exatamente por isso, suas normas visando impor limites e controle ao risco permanente da violência.


OS CONSTITUINTES DO CAMPO ETICO.

Para que haja conduta ética é preciso que exista o agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre o bem e mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vicio. A consciência moral não só conhece tais diferenças, mas também se reconhece como capaz de julgar o valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais, sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e pelas conseqüências do que faz e sente. Consciência e responsabilidade são condições indispensáveis da vida ética.
A consciência moral manifesta-se, antes de tudo, na capacidade para deliberar diante de alternativas possíveis, decidindo e escolhendo uma delas antes de lançar-se na ação. Tem a capacidade para avaliar e pesar as motivações pessoas, as exigências feitas pela situação, as conseqüências para si e para os outros, a conformidade entre meios e fins, a obrigação de respeitar o estabelecido ou de transgredi-lo.
A vontade é esse deliberativo e decisório do agente moral. Para que exerça tal poder sobre o sujeito moral. Para que exerça tal poder sobre o sujeito moral, a vontade deve ser livre, isto é, não pode estar submetida à vontade de um outro nem pode estar submetida aos instintos e as paixões, mas, ao contrário, deve ter poder sobre eles e elas.
O campo ético é, assim, constituído pelos valores e pelas obrigações que formam o conteúdo das condutas morais, isto é, as virtudes. Estas são realizadas pelo sujeito moral, principal constituinte da existência ética.
O sujeito ético ou moral, isto é, a pessoa, só pode existir se preencher as seguintes condições:
ð Ser consciente de si e dos outros, isto é, ser capaz de refletir e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a ele;
ð Ser dotado de vontade, isto é, de capacidade para controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos e de capacidade para deliberar e decidir entre várias alternativas possíveis;
ð Ser responsável, isto é, reconhecer-se como autor da ação, avaliar os efeitos e conseqüências dela sobre si e sobre os outros, assumi-la, bem como as suas conseqüências, respondendo por elas;
ð Ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se com causa interna de seus sentimentos, atitudes e ações. Por não estar submetido a poderes externos que o oferecem e o constranjam a sentir, a querer e a fazer alguma coisa. A liberdade não é tanto o poder para escolher entre vários possíveis, mas o poder para autodeterminar-se dando a si mesmo as regras de conduta.

O campo ético é, portanto, constituído por dois pólos internamente relacionados: o agente ou sujeito moral e os valores morais ou virtudes éticas.
Do ponto de vista do agente ou sujeito moral, a ética faz uma exigência essencial, qual seja, a diferença entre passividade e atividade. Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus impulsos, inclinações e paixões, pelas circunstancias, pela boa ou ma sorte, pela opinião alheia, pelo medo dos outros, pela vontade de um outro, não exercendo sua própria consciência, vontade, liberdade e responsabilidade.
Ao contrario, e ativo ou virtuoso aquele que controla interiormente seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos, indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros valores e fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si mesmo as regras de conduta, consulta sua razão e sua vontade antes de agir, tem consideração pelos outros sem subordinar-se nem submeter-se cegamente a eles, responde pelo que faz, julga suas próprias intenções e recusa a violência contra si e contra os outros. Numa palavra, é autônomo (a palavra autônomo vem do grego: autos – eu mesmo, si mesmo – e nomos – lei, regra, norma - . aquele que tem o poder para dar a si mesmo a regra, a norma, a lei é autônomo e goza de autonomia ou liberdade. Autonomia significa autodeterminação. Quem não tem a capacidade racional para autonomia é heterônomo. Heterônomo vem grego: hetero e nomos; receber de um outro a norma, a regra ou a lei).
Do ponto de vista dos valores, a ética exprime a maneira como a cultura e a sociedade definem para si mesma o que julgam ser a violência e o crime, o mal e o vício e, como contrapartida, o que consideram ser o bem e a virtude. Por realizar-se como relação intersubjetiva e social, a ética não é alheia ou indiferente as condições históricas e políticas, econômicas e culturais da ação moral.
Conseqüentemente, embora toda ética seja universal do ponto de vista da sociedade que a institui, está em relação com o tempo e a historia, transformando-se para responder as exigências novas da sociedade e da cultura, pois somos seres históricos e culturais e nossa ação se desenrola no tempo.
Além do sujeito ou pessoa moral e dos valores ou fins morais, o campo ético é ainda constituído por um outro elemento: os meios para que o sujeito realize os fins.
Constuma-se dizer que os fins justificam os meios, de modo que, para alcançar um fim legitimo, todos os meios disponíveis são validos. No caso da ética, porem, essa afirmação deixa de ser obvia.
Suponhamos uma sociedade que considere um valor e um fim moral a lealdade entre seus membros, baseada na confiança recíproca. Isso significa que a mentira, a inveja, adulação, a má-fé, a crueldade e o medo deverão estar excluídos da vida moral, e ações que os empreguem como meios para alcançar o fim serão imorais.
No entanto, poderia acontecer que para forçar alguém a lealdade seria preciso faze-lo sentir medo da punição pela deslealdade, ou seria preciso mentir-lhe para que não perdesse a confiança em certas pessoas e continuasse leal a elas. Nesses casos, o fim – a lealdade – não justificaria os meios – medo e mentira? A resposta ética é: não por quê? Porque esses meios desrespeitam a consciência e a liberdade da pessoa moral, que agiria por coação externa e não por reconhecimento interior e verdadeiro do fim ético.
No caso da ética, portanto, nem todos os meios são justificáveis, mas apenas aqueles que estão de acordo com os fins da própria ação. Em outras palavras, fins éticos exigem meios éticos.
A relação entre meios e fins pressupõe que a pessoa moral não existe como um fato dado, mas é instaurada pela vida intersubjetiva e social, precisando ser educada para os valores morais e para as virtudes.
Poderíamos indagar se a educação ética não seria uma violência. Em primeiro lugar, porque se tal educação visa a transformar-nos de passivos em ativos, poderíamos perguntar se nossa natureza não seria essencialmente passional e, portanto, forçar-nos a racionalidade ativa não seria um ato de violência contra a nossa natureza espontânea? Em segundo lugar, porque se a tal educação visa a colocar-nos em harmonia e em acordo com os valores de nossa sociedade, poderíamos indagar se isso não nos faria submetidos a um poder externo a nossa consciência, poder da moral social.






9. A DEMOCRACIA

DEMOCRACIA: FORMAL E SUBSTANCIAL

O ideal de uma sociedade verdadeiramente democrática é que ela seja uma democracia formal e substancial. Embora haja variações nos graus de aproximação desse ideal, sabemos que pelo menos até agora nenhuma nação preencheu totalmente tais requisitos, o que não impede de elaborarmos projetos a serem perseguidos na construção de um mundo melhor.
O aspecto formal da democracia consiste no conjunto das instituições características deste regime: o voto secreto e universal, a autonomia dos poderes, pluripartidarismo, representatividade, ordem jurídica constituída, liberdade de pensamento e expressão e assim por diante. Trata-se propriamente das regras do jogo democrático, do estabelecimento dos meios pelos quais a democracia se exerce.
A democracia substancial diz respeito não aos meios, mas aos fins que são alcançados, aos resultados do processo. Dentre estes valores se destaca a efetiva – e não apenas ideal – igualdade jurídica, social e econômica. Portanto, a democracia substancial diz respeito aos conteúdos alcançados de fato.
Dentre os mais diversos países constatamos que em alguns pode haver democracia formal, sem que se tenha conseguido cumprir as promessas da democracia substancial, enquanto em outros pode haver democracia substancial implantada sem recurso ao exercício democrático do poder. É o caso das democracias para o povo, mas não pelo povo.
A fim de melhor compreender tais contradições, vamos examinar quatro campos possíveis do exercício democrático: econômico, social, jurídico e político.

a) DEMOCRACIA ECONÔMICA: há democracia econômica quando existe justa distribuição de renda, iguais oportunidades de trabalho, contratos livres, sindicatos fortes. Tais aspectos formais podem levar ou não à efetiva democracia substancial. Sabemos que a livre concorrência, sem os devidos cuidados para ser mantido o interesse coletivo, pode provocar conseqüências danosas para a maioria da população. Por outro lado, também o controle total feito pelo Estado é paternalista e pode levar a distorções, como ocorreu nas sociedades socialistas do Leste europeu, onde os bens de produção foram apropriados pelo Estado.

b) DEMOCRACIA SOCIAL: embora as pessoas sejam diferentes e participem de grupos diversos, ninguém pode ser discriminado, e todos devem ter possibilidade de acesso aos bens materiais como moradia, alimentação e saúde, e educação, profissionalização, lazer, arte. É preciso existir abertura para a produção e consumo da cultura, e que não haja censura, a fim de que as informações circulem livremente. Numa sociedade democrática o saber deve ser acessível a todos sem tornar-se privilégio de alguns.

c) DEMOCRACIA JURÍDICA: a democracia supõe o estado de direito, o respeito à Constituição, a autonomia do poder Judiciário. O poder autoritário se caracteriza pela submissão dos poderes Legislativo e Judiciário ao Executivo. Basta lembrar o tempo da ditadura militar no Brasil, quando se governava por meio de atos institucionais, indiferentes à soberania do Congresso. A continuidade do uso e abuso de medidas provisórias indica ainda resquícios do estado de arbítrio. Para ser substancial, a democracia jurídica deve se basear em leis que realmente atendam ao interesse da comunidade e precisa contar com uma justiça ágil e resistente às pressões de grupos.

d) DEMOCRACIA POLÍTICA: o coração da democracia está no reconhecimento do valor da coisa pública, separada dos interesses particulares. Neste sentido, há a exigência da institucionalização do poder, ou seja, quem ocupa o poder o faz enquanto representante do povo, e, como tal, não é proprietário do poder, mas ocupa um lugar vazio, um espaço que será assumido também por outras pessoas, garantindo a rotatividade do poder. O acesso ao poder na democracia política é ascendente, fazendo-se de baixo para cima, pela escolha popular e com os recursos do pluripartidarismo, garantia da existência da oposição efetiva. Pois se a democracia supõe o consenso, isto é, aceitação comum das regras após as discussões, tal procedimento não elimina a permanência do dissenso, a possibilidade de discorda e sempre que necessário.

Aliás, uma característica da democracia é a aceitação do conflito como expressão das opiniões divergentes. Faz parte do processo democrático trabalhar o conflito e não negá-lo ou camuflá-lo. Além disso, a ampliação da democracia ocorre paralelamente à multiplicação dos órgãos representativos da sociedade civil, de modo a ativar as formas de participação dos cidadãos em geral. É isto que pode tornar a democracia uma policracia, o regime que não tem apenas um centro, mas cujo poder se irradia para inúmeros pontos da sociedade. Por exemplo, são importantes as organizações tanto ocasionais como permanentes que representam interesses de setores da coletividade, tais como associações de bairros, mutirões, grupos contra a violência, grupo ecológicos, ao lado de outras importantes instituições como a Ordem dos Advogados, a Associação de Imprensa, os partidos políticos, os sindicatos etc.
Tal difusão de poderes dá condições para o melhor cumprimento da vontade geral, bem como para o controle dos abusos, exigindo-se maior transparência das ações nas diversas instâncias de poder.
O que prejudica o processo de democratização é o desvirtuamento da atividade política, voltada para interesses particulares, a descaracterização dos partidos sem estofo ideológico ao sabor de casuísmos e conchavos, e a grande maioria despolitizada e não-participante.

DEMOCRACIA: DIRETA OU REPRESENTATIVA?

Quanto ao tipo de soberania popular, distinguimos a democracia direta da democracia representativa.
A mais antiga democracia de que se tem notícia é a ateniense. Trata-se da democracia direta, em que todo cidadão tem não só o direito, como também o dever de participar da assembléia pública a fim de decidir os destinos da pólis. A igualdade que daí resulta se caracteriza pela isonomia e pela isegoria.
A apogeu da democracia grega se deu no século V a.C., mas, a bem da verdade, é preciso lembrar que na sociedade grega os escravos, mulheres e estrangeiros não eram considerados cidadãos e portanto se achavam excluídos da vida pública. Restava, de fato, apenas 10% do corpo social capaz de decisão política. O que importa, no entanto, é o surgimento do ideal democrático como um valor novo que se contrapõe à concepção aristocrática de poder.
Apesar da experiência democrática, os principais teóricos gregos, como Platão e Aristóteles, vêem com reserva a democracia, que para eles ocupa o último lugar dentre as formas de governos.
Na Idade Moderna surgem as teorias políticas contratualistas e que começam a ocupar-se com a questão da legitimidade do poder.
Para um liberal como Locke, a legitimidade do poder se encontra na origem parlamentar do poder político. Isto significa que a ocupação de um cargo político não deve resultar de um privilégio aristocrático, mas do mandato popular alcançado pelo voto: a representação política torna-se legítima porque nasce da vontade popular.
Em outras palavras: na Idade Média transmitia-se por herança tanto a propriedade como o poder político; o herdeiro do rei, do conde ou do marquês recebia não só os bens como também o poder sobre os homens que viviam nas terras herdadas. Já com o liberalismo, estabelece-se a distinção entre sociedade política e sociedade civil, entre público e privado.
Na verdade, o liberalismo dos séculos XVII e XVIII não era igualitário, mas fundamentalmente elitista. Por isso, é preciso entender que a representação política se referia aos que possuíam propriedades e, com o voto censitário, excluía-se do poder a grande maioria, apenas proprietária do seu corpo, ou seja, da força de trabalho.
Ainda no século XVIII, em pleno período de valorização da legitimidade da representação, Rousseau defende a democracia direta. Para ele, com o contrato social, cada indivíduo aliena incondicionalmente seu poder em favor da coletividade, mas a vontade geral não pode ser alienada nem representada. Isto significa que para Rousseau os deputados e governantes não são representantes do povo, mas apenas seus oficiais, estando subordinados à soberania popular, a única que decide por meio de assembléias, plebiscitos e referendos.
A vontade geral é um conceito fundamental para compreender a democracia rousseauísta. Todo indivíduo é ao mesmo tempo uma pessoa privada e uma pessoa pública: enquanto pessoa privada trata de seus interesses particulares, e enquanto pessoa pública é parte de um corpo coletivo que tem interesse comuns. Nem sempre o interesses de um coincide com o de outro, pois muitas vezes o que beneficia a pessoa particular pode ser prejudicial ao coletivo. Aprender a ser cidadão é justamente saber qual é a vontades geral, típica do interesse de todos enquanto componentes do corpo coletivo, mesmo que à revelia dos seus próprios interesses enquanto pessoa particular.
O próprio Rousseau reconhecia as dificuldades em implantar a democracia direta, sobretudo em nações de território extenso e grande densidade populacional.
Mas essa objeção não nos deve desanimar na busca do aperfeiçoamento do jogo democrático. Ao contrário, o desafio está justamente em descobrir formas para melhor aproximação dos ideais da democracia.


DEMOCRACIA E CIDADANIA

Se até hoje temos nos contentado com a democracia representativa, não há como deixar de sonhar com mecanismos típicos da democracia direta que possibilitem a presença mais constante do povo nas decisões de interesse coletivo.
Na Constituição brasileira de 1988 foi introduzida a iniciativa popular de projetos de leis, através de manifestações do eleitorado, mediante porcentagem mínima estipulada conforme o caso. Essa forma de atuação ainda será regulamentada e devem ser enfrentadas dificuldades as mas diversas para o exercício efetivo.
Mas alguns poderiam argumentar: para participar enquanto cidadão pleno é preciso que haja politização, caso contrário haverá apatia ou manipulação. Daí o desafio: quem educa o cidadão?
Cidadania se aprende no exercício mesmo da cidadania. Embora a escola seja aliada importante, não é nela fundamentalmente que se dá a aprendizagem, pois há o risco da ideologia e do discurso vazio, quando o ensino não é acompanhado de fato pela ampliação dos espaços de atuação política do cidadão na sociedade.
A participação popular se intensifica com as já referidas organizações saídas da sociedade civil. Essas organizações, ao colocarem seus representantes em confronto com o poder constituído, tornam-se verdadeiras escolas de cidadania. O importante do processo é que, ao lado dos outros poderes, como o poder oficial do município, do estado e federal, e o poder das elites econômicas, desenvolve-se o poder alternativo. Ou seja, o esforço coletivo na defesa de interesses comuns transforma a população amorfa, inexpressiva e despolitizada em comunidade verdadeira.
Na luta contra a tirania e o poder arbitrário, nem as regras da moral, nem apenas as leis impedirão o abuso do poder. Na verdade, como já dizia Montesquieu, só o poder controla o poder.
Fonte do textos
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia: ser, saber e fazer. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1993
MARIA, Lúcia de Arruda Aranha e MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de filosofia. São Paulo: Moderna, 1992.